quarta-feira, 30 de março de 2011

21 - Crise da Líbia: entrevista com Moniz Bandeira

Segue uma interessante entrevista com o historiador e cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira sobre a Crise da Líbia. O artigo foi publicado originalmente na Carta Maior (ver final do texto)

EUA e aliados querem legitimar doutrina da intervenção humanitária

As razões pelas quais Estados Unidos, França e Inglaterra dediciram liderar uma ação militar na Líbia contra o regime de Muammar Kadafi ainda não estão muito claras. Os limites desta ação determinados pela resolução aprovada no Conselho de Segurança das Nações Unidas falavam da instalação de uma "zona de exclusão aérea" com o objetivo de proteger a população civil dos ataques dos aviões de Kadafi. Mas esses limites já foram extrapolados, com ataques no solo a tanques e tropas leais ao governo líbio. O que, afinal, está por trás desta ação?

Em entrevista à Carta Maior, concedida por correio eletrônico, o historiador e cientista político Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira analisa as revoltas populares que estão acontecendo no Oriente Médio e no norte da África. Sobre o conflito líbio, Moniz Bandeira reconhece que as razões da posição de EUA, França e Inglaterra não estão muito claras e podem estar relacionadas a questões internas destes países e também à vontade de legitimar a doutrina da intervenção humanitária.

"Os objetivos não estão claros. A guerra foi praticamente iniciada pelo presidente da França, Nicolas Sarkozy. Supõe-se que ele deseja evitar que uma guerra civil na Líbia provoque um grande fluxo de refugiados para o sul da França. Mas há outras hipóteses. Tanto na França como nos Estados Unidos, cujos presidentes estão muito desgastados, bem como na Inglaterra, motivos eleitorais provavelmente influíram na decisão de deflagrar a guerra. O petróleo, aparentemente, não foi um fator decisivo", avalia.

Cientista político e professor titular de história da política exterior do Brasil na UnB (aposentado), Moniz Bandeira é autor de mais de 20 obras, entre as quais "Formação do Império Americano", que lhe valeu a escolha de Intelectual do Ano 2005, pela União Brasileira de Escritores, e o Troféu Juca Pato. Em abril deve estar nas livrarias a 3ª edição de seu livro "Brasil-Estados Unidos: a rivalidade emergente", prefaciado pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães.

Carta Maior: Na sua avaliação, quais são as principais causas das revoltas que estamos assistindo hoje no Oriente Médio e norte da África?

Moniz Bandeira: É difícil apontar os principais fatores que determinaram e determinam a eclosão das revoltas nos países árabes. São diversos e complexos. E tudo indica que são autóctones, não obstante o fenômeno do contágio. O sucesso do levante na Tunisia estimulou o alçamento no Egito e daí se alastrou, conforme as condições domésticas de cada um dos países da região. Há, decerto, diferenças históricas, sociais e políticas entre os dois países. Suas estruturas de Estados e instituições são diferentes. Ao contrário da Tunísia, o Egito é o mais populoso país árabe e o mais importante, do ângulo geopolítico e geoestratégico, no Oriente Médio. Entretanto, nos dois países, há uma juventude, com certo nível de educação e saúde que não encontra emprego ou ocupação adequada à sua capacitação. 

A Tunísia tem uma população de cerca de 10,4 milhões de habitantes, altamente alfabetizada e urbanizada e apenas 3,8% vivem abaixo do nível de pobreza. Porém, com uma força de trabalho de quase 4 milhões de pessoas, o nível de desemprego, da ordem de 14%, é muito elevado. O Egito, por sua vez, tem uma população de 76,5 milhões de habitantes, dos quais cerca de 20% a 25% vivem abaixo do nível de pobreza. Sua força de trabalho soma 26,1 milhões, mas o índice de desemprego, da ordem de 9.7%, é bastante elevado. Apesar de haver crescido 5% nos últimos anos, sua economia não conseguiu criar empregos conforme as necessidades da população. A juventude está seriamente afetada pelo desemprego. Cerca de 90% dos desempregados são jovens com menos de 30 anos. Os graduados têm de esperar pelo menos cinco anos por uma oportunidade de trabalho na administração. E as políticas neoliberais executadas pelo ditador Hosni Mubarak agravaram as desigualdades e um empobrecimento de milhões de famílias. 

As oportunidades de trabalho, desde há muitas décadas, crescem muito menos do que a taxa de crescimento da população. Entrementes, no campo, há algumas regiões com excesso de força de trabalho, e outras com carência. E os regimes tanto na Tunísia e quanto no Egito estavam politicamente estagnados, sob ditaduras corruptas e brutais de Zine el-Abidine Ben Ali e de Hosni Mubarak. Esse fato, em meio à ao desemprego, extrema pobreza, inflação, alta dos preços dos alimentos e o ressentimento político provocado pela sistemática repressão, foi aparentemente fundamental na deflagração das revoltas, que, sem dúvidas, seitas islâmicas fundamentalistas, como a Irmandade Muçulmana no Egito, e interesses estrangeiros trataram e tratam de aproveitar.

Carta Maior: Essas revoltas pegaram os Estados Unidos e seus aliados de surpresa, desestabilizando suas políticas na região, ou a turbulência atual não representa risco maior para eles?

Moniz Bandeira: Muito provavelmente as revoltas na Tunísia e também no Egito surpreenderam os Estados Unidos e a todos os países do Ocidente. Durante algumas semanas o governo de Washington nada disse sobre a sublevação na Tunísia. E, quando Hilary Clinton, viajou para Tunis, dois meses após a derrubada do ditador, ocorreram demonstrações contra a sua visita. Se houvesse consciência do que estava a acontecer, a secretária de Estado não haveria declarado, quando o levante começou no Cairo, "Our assessment is that the Egyptian government is stable and is looking for ways to respond to the legitimate needs and interests of the Egyptian people." Esta avaliação de que o regime de Mubarack era estável demonstra o grau de desconhecimento que o governo dos Estados Unidos tinha da real situação no Egito. Que havia descontentamento, sabia-se, mas não a sua extensão nem o que poderia provocar. 

É claro que tal turbulência representa um risco para os Estados Unidos e para a União Européia, pois não se pode descartar a possibilidade de que a Irmandade Muçulmana, a única força organizada no Egito, vença as eleições e assuma o governo e que os fundamentalistas islâmicos venham a predominar, de alguma forma, nos outros países árabes. 

Carta Maior: Como o sr. vê o que está acontecendo na Líbia agora? Trata-se de uma revolta popular em busca de mais democracia no país, ou de uma insurreição de outra natureza?

Moniz Bandeira: O que se sabe sobre a Líbia é que ninguém sabe de fato o que lá está acontecendo. Há muita contra-informação e informações fragmentadas e confusas, manipuladas pela grande mídia internacional. Winston Churchill, o ex-primeiro ministro britânico, escreveu em suas memórias quem tempos de guerra a verdade é tão preciosa que deve estar sempre escoltada por uma frota de mentiras. E o certo é que em nenhum desses países árabes, há uma consciência democrática, tal como se imagina no Ocidente. Há apenas uma idéia difusa e confusa. Não há tradição e as condições históricas, políticas e culturais são diversas das que terminaram o desenvolvimento da democracia no Ocidente. 

A democracia para os povos árabes, que se insurgem no norte da África e no Oriente Médio, significa maiores oportunidades de trabalho, de participação política, liberdade de expressão e melhoria econômica e social. E, na Líbia, como na Tunísia e no Egito, a elevação preço dos alimentos fomentou o descontentamento, ao agravar as condições sociais e políticas lá existentes. E ela sofreu o efeito do contágio. A Líbia tem 6,5 milhões de habitantes, dos quais 43% são urbanizados, mas o desemprego é da ordem de 30% e um terço da população vive abaixo da linha de pobreza. Importa 75% dos alimentos e as exportações de petróleo respondem por cerca de 95% de sua receita comercial e 80% da receita do governo. 

A situação da Líbia, porém, é ainda mais complexa do que na Tunísia e no Egito. Gaddafi assumiu o poder em 1969. Com um golpe militar derrubou o rei Idris, da seita Senussi, fundada no século XIX, em Meca, por sayyd Muhhammad ibn Ali as-Senussi, da tribo Walad Sidi Abdalla e sharif, i. e., descendente da Fatmimah, filha de Maomé. Desde então, Gaddafi buscou impor à Líbia um só partido. Mas a Líbia, diferentemente da Tunísia e do Egito, é uma nação que ainda não se consolidou. É o mais tribal entre os países árabes. Pode-se dizer que é um Estado semi-tribal. Sua estrutura rural é praticamente assentadas em tribos nômades e semi-nômades, muito segmentadas Lá existem mais de 140 tribos e clãs. Gaddafi , no início, tentou reduzir a influências da tribos, mas posteriormente teve de fazer alianças e manipular a fidelidade das tribos para manter sua ditadura.

A tribo de Gaddafi, Ghadafa (Qadhadhfah) é de origem bérbere-árabe e aliou-se à confederação Sa'adi, liderada por Bara'as (a tribo da esposa de Gaddafi, Farkash al-Haddad al-Bara'as). Os conflitos entre as forças do governo de Gaddafi e outras tribos – as tribos Zawiya e Toubou - começaram entre 2006 e 2008, no oasis de Kufra, localizado no sudeste da Libia, 950 quilômetros ao sul de Benghasi, perto da fronteira com o Egito, Sudão Chad. Benghasi, onde a rebelião começou, está na Cirenaica, antiga província romana (Pentapolis) e tradicionalmente separatista, na parte oriental da Líbia. Misurata é a única cidade na Tripolitânia, oeste da Líbia, que habita a tribo Warfallah, o maior grupo tribal, dividido em 52 sub-tribos, com cerca de um milhão pessoas. Essa tribo foi levada para a Líbia, no século XI, pelos Fatimidas, por motivos políticos. A ela está aliada a tribo Az-Zintan, que habita as montanhas ocidentais, entre as cidades bérberes, Jado, Yefren e Kabaw. E essas tribos romperam com o governo de Gaddafi, insurgiram-se e sustentam a rebelião. Não há indício de que houve estímulo direto do estrangeiro quando ela começou. Porém, em seguida, seguramente, houve participação externa, contrabandeando armamentos para os rebeldes em Benghazi. O contrabando continua. Mas a rebelião conta com o apoio do Grupo de Combate Islâmico, cujos membros estão estreitamente ligados a Bin Laden e podem tentar a tomada do governo, com a queda de Gaddafi. Tudo indica que a oposição à ditadura de Gaddafi está mais alinhada com a al’Qaida. Sob o comando de Abu Yahya Al- Libi, os jhadistas do Grupo Islâmico de Combate (Al-Jama'ah al-Islamiyah al-Muqatilah bi-Libia) já tinham se levantado contra o regime em 1990 e o centro da rebelião, atualmente, são as cidades de Benghazi e Darnah, onde eles se haviam concentrado e ocorrerem os levantes em 1990. 

Muitos islamistas radicais, exilado por Gaddafi, estão a voltar, entrando pelas fronteiras de Mali, Egito e outras. Os rebeldes, saudados pelos americanos como freedom fighters, não são, certamente, democratas. Um estudo da Academia Militar dos Estados Unidos, em 2007, indicou que do leste da Líbia saiu uma grande contribuição para a al-Qaeda no Iraque. Em tais circunstâncias, tudo pode acontecer na Líbia, com a prevalência e a desordem política, pior do que no Iraque e no Afeganistão. 

Os Estados Unidos, França e Inglaterra não têm como controlar a situação. A razão pela qual esses países estão apoiar os rebeldes islamistas não está muito clara. O mais provável é que queiram legitimar a doutrina da intervenção humanitária, tal como ocorreu no Kosovo e Sierra Leoa. Há uma contradição inexplicável de interesses em jogo. E não sem razão o ex-presidente Bill Clinton, ao visitar o Brasil, em 25 de março, declarou, a respeito do que os Estados Unidos, França e Inglaterra estão a fazer na Líbia.: "Vai ser mais difícil construir estabilidade nesses países do que foi para derrubar a velha ordem. Então agora acho que estão atirando em uma incerteza". 

Carta Maior: E quanto à resolução aprovada pela ONU, qual sua opinião?

Moniz Bandeira: A resolução aprovada Conselho de Segurança viola a própria carta das Nações Unidas. O art. 2, do Cap. I, estabelece que “nenhuma disposição da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervir em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição interna de qualquer Estado, ou obrigará os membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas constantes do capítulo VII”. E o art. 42 do Capítulo VII dispõe que, se o Conselho de Segurança, considerar que “as medidas previstas no artigo 41 seriam ou demonstraram ser inadequadas (interrupção completa ou parcial das relações econômicas, dos meios de comunicação ferroviários, marítimos, aéreos, postais, telegráficos, radio-elétricos, ou de outra qualquer espécie, e o rompimento das relações diplomáticas), poderá levar a efeito, por meio de forças aéreas, navais ou terrestres, a ação que julgar necessária para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais. Tal ação poderá compreender demonstrações, bloqueios e outras operações, por parte das forças aéreas, navais ou terrestres dos membros das Nações Unidas”. 

Está bem claro que as operações militares aéreas, navais ou terrestres dos membros das Nações Unidas só poderão ocorrer caso sejam necessárias “para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais”. O que ocorria na Líbia era uma questão interna, não ameaçava a paz e a segurança internacionais. O ataque a um país soberano é uma guerra. Não há nenhuma força multilateral. E os Estados Unidos, França e Inglaterra foram além de estabelecer uma no-fly zone para proteger civis. Como proteger civis, matando civis com mísseis lançados contra as cidades da Líbia? É o que continua a acontecer no Iraque, Afeganistão e Paquistão. Os civis são os mais sacrificados. 

No Afeganistão, somente em 2009, foram mortos por bombardeios cerca de 2.412 , 14% mais do que em 2008. Entre 2005 e 2008, as forças dos Estados Unidos e outras da OTAN mataram entre 2.699 e 3.273. No Iraque, calcula-se que, de 2003, quando a guerra começou, até 2007 mais de um milhão de civis foram mortos. E calcula-se que cerca de 700 civis foram pelos bombardeios americanos desde 2006. Segundo o Conflict Monitoring Center (CMC), em Islamabad, somente em 2011 mais de 2.000 pessoas foram mortas, a maioria das quais inocentes civis.

Na realidade, na Líbia, Estados Unidos, França a Inglaterra estão a participar da guerra civil, apoiando os rebeldes, como a Alemanha nazista fez durante a guerra civil na Espanha (1936-1939), quando bombardearam não apenas Guernica, mas diversas outras cidades, estreando seus bombardeiros Junkers Ju 52 e Heinkel He 111, bem como os caças Messerschmitt e Junkers Ju 87, que destruíram 386 aviões dos republicanos. Os navios de guerra dos Estados Unidos e da Inglaterra já lançaram contra a Libia, para a destruir as defesas de Gaddafi, cerca de 124 mísseis de cruzeiro. Cada um custa US1 milhão e o novo modelo US$ 2 milhões. No primeiro dia da Operation Odyssey Dawn os gastos dos Estados Unidos apenas com mísseis chegaram a US$100 milhões.

Carta Maior: Neste cenário, não é fácil precisar quais os objetivos dos Estados Unidos, França e Inglaterra no ataque às forças de Gaddafi, ajudando os rebeldes...

Moniz Bandeira – Os objetivos não estão claros. A guerra foi praticamente iniciada pelo presidente da França, Nicolas Sarkozy. Supõe-se que ele deseja evitar que uma guerra civil na Líbia provoque um grande fluxo de refugiados para o sul da França. Mas há outras hipóteses. Tanto na França como nos Estados Unidos, cujos presidentes estão muito desgastados, bem como na Inglaterra, motivos eleitorais provavelmente influíram na decisão de deflagrar a guerra. O petróleo, aparentemente, não foi um fator decisivo. A França somente importa 5,63% do petróleo da Líbia, mas, possivelmente, deseja assegurar para seu abastecimento, durante o século XXI, as vastas reservas lá existentes, estimadas em 41 bilhões de barris, conquanto representem menos de 2% das reservas mundiais. Os países que mais importam o óleo da Líbia são Itália, entre 18,9% e 22%; China, 10,4%; Alemanha, entre 7,8 e 9,7. Porém, as operações na Líbia, de onde só importa 0,6% de petróleo, poderão custar para os Estados Unidos um montante entre US$ 400 milhões e US$ 800 milhões, de acordo com oCenter for Strategic and Budgetary Assessments, enquanto os gastos no Afeganistão já ultrapassam US$377 bilhões. 

Calcula-se que a guerra contra a Líbia custará para os Estados Unidos US$ 1 bilhão por semana. E o Pentágono necessita este ano de mais US$ 708 bilhões, incluindo U$ 159 para as guerra no Iraque e Afeganistão. Entrementes, em março, o déficit orçamentário atingiu o montante recorde de US$ 222,5 bilhões.

E o Departamento do calcula que através dos cinco meses do ano fiscal de 2011 o déficit cumulativo seja de U$ 641, bilhões. Entretanto, pelo menos 50.000 americanos carecem de recursos básicos de saúde, e cerca de 50.000 morrem em conseqüência, todos os anos. 

No Reino Unido, ao mesmo tempo em que corta das despesas públicas £95 bilhões, a pretexto de reduzir, e cria um milhão de desempregados, o governo conservador de David Cameron gasta em torno de £3 milhões por dia, com as operações aéreas contra as forças de Gaddafi. A missão de uma aeronave custa por hora £35.000 e £50.000. O total diário é £200.000 por avião. Estima-se que o custo para os contribuintes inglêses alcançará £100 milhões dentro de seis semanas. Os mísseis Tomahawk, comprados dos Estados Unidos, custam £500,000 cada e os mísseis Storm Shadow custam £800,000 cada. A manutenção do submarino HMS Triumph, que dispara os mísseis contra a Líbia, custa cerca de £200,000 por dia. E aí os custos disparam. 

Carta Maior: O presidente dos EUA, Barack Obama autorizou o início dos bombardeios contra a Líbia durante sua visita ao Brasil. Qual sua avaliação sobre essa visita e, de um modo mais geral, sobre a política externa do governo Obama. Houve alguma mudança significativa em relação aquela praticada pelo governo Bush?

Moniz Bandeira: O que está por trás de do presidente Barack Obama é o mesmo Complexo Industrial-Militar que sustentou o presidente George W. Bush. Ele deu continuidade às guerras no Afeganistão e no Iraque, onde ainda mantém cerca de 40 soldados, além dos mercenários (contractors)das private military company (PMC), como a Halliburton, Blackwater e outras. E não contente em continuar as guerras no Afeganistão e no Iraque, deu início a uma terceira, na Líbia. E aí tudo indica que a decisão inicial, após conversar com o presidente Sarkozy, foi tomada pela secretária de Estado, Hilary Clinton, e Obama simplesmente autorizou. Na realidade, ela se sobrepõe ao presidente Obama e é quem está efetivamente conduzindo a política internacional dos Estados Unidos, de modo a atender aos setores mais conservadores do Partido Democrata e aumentar sua popularidade, para candidatar-se outra vez à presidência dos Estados Unidos. 

Quanto à visita do presidente Obama ao, não representou qualquer mudança na política externa dos Estados Unidos nem nas relações com o Brasil. Foi uma visita protocolar, ele nada pôde nem tinha o que oferecer ao Brasil, cuja diretriz de política externa a presidente Dilma Roussef essencialmente mantém. O voto em favor de um delegado da ONU para verificar a questão dos direitos humanos na Irã é um fato isolado e não representa uma alteração fundamental na posição do Brasil.

 

Por Marco Aurélio Weissheimer 

http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17611


sábado, 26 de março de 2011

20 - Povoamento da América

Segue uma notícia que saiu na Veja (versão digital de 23 de março de 2011), relatando um estudo publicado na revista Science, sobre a descoberta de vestígios que indicam que o povoamento da América começou há mais tempo do que muitos imaginaram. Na verdade, a datação mais antiga vem sendo proposta por pesquisadores há décadas, mas parte da comunidade acadêmica, sobretudo estudiosos dos EUA, insistia em uma datação mais recente. As descobertas citadas na reportagem reforçam os argumentos dos defensores do povoamento mais antigo. Outra observação: o texto fala de uma “civilização” que teria chegado há mais tempo na América. Naturalmente, o termo civilização, neste caso, está sendo usado como sinônimo de uma cultura material e não no sentido de uma sociedade complexa com cidades e Estado, como se costuma considerar.

Homem já ocupava América do Norte há 15.500 anos

Ferramentas achadas no Texas são 2.500 anos mais antigas que os vestígios dos humanos de Clóvis, conforme estudo publicado na 'Science’

O homem chegou à América do Norte 2.500 anos antes do que se pensava, de acordo com um estudo publicado no periódico americano Science. Cientistas da Universidade Texas A&M analisaram mais de 15.000 objetos de pedra encontradas a 65 quilômetros de Austin, no Texas (EUA), e estimaram que foram feitos há 15.500 anos. Até agora, a evidência mais antiga da ocupação humana na América do Norte era o sítio arqueológico de Clóvis, no estado do Novo México (EUA), onde foram encontrados vestígios de uma civilização que teria cruzado o Estreito de Bering, da Ásia à América do Norte, há 13.000 anos.

Os 15.000 objetos foram encontrados abaixo da camada de terra comumente associada ao período dos humanos de Clóvis. Para o arqueólogo Michael Waters, chefe da pesquisa, o achado é a indicação de que existiu uma civilização (sic) mais antiga do que se pensava na América do Norte. "A descoberta nos desafia a repensar como ocorreu a colonização do continente americano", disse o cientista, em entrevista ao jornal inglês Guardian.

A maior parte dos objetos encontrados são os restos da fabricação e manutenção de outras ferramentas. Contudo, "mais de 50 são ferramentas propriamente ditas", disse Waters. De acordo com o arqueólogo existem objetos que aparentam ser projéteis e outros que foram feitos com o propósito de raspar e cortar. Os cientistas acreditam que as ferramentas eram pequenas para que pudessem ser levadas com facilidade para outras localidades. 
Embora os objetos sejam diferentes da cultura Clóvis, Waters acredita que os dois sítios arqueológicos podem ter ligação. "A civilização que produziu os objetos que encontramos teve tempo suficiente para aprender a construir objetos que hoje reconhecemos como sendo da cultura Clóvis", disse. "Acho que passou da hora de formularmos um novo modelo para o povoamento das Américas", afirmou o arqueólogo.

quinta-feira, 17 de março de 2011

19 - Texto: Democracia e liberdade de opinião

Pessoal, segue parte de um texto interessante do jornalista Reinaldo Azevedo sobre a liberdade de opinião. Ele foi publicado originalmente na edição eletrônica da Veja em 16 de março de 2011. Clique no título para ler o texto completo.


Tenho afirmado e escrito freqüentemente que aprecio a democracia menos pelo valor afirmativo do sistema do que por seu valor negativo; ou seja, menos pela prevalência da vontade da maioria do que pela possibilidade de as minorias dizerem o que pensam. Afinal, nas ditaduras, também é permitido concordar. Pode-se dizer “sim” em Nova York, em Trípoli e em Pequim. A segurança para dizer “não” é que distingue os regimes.

Da mesma forma que o teste de resistência da democracia é feito por aqueles que discordam de consensos — sejam estes legítimos ou não, embasados ou não em verdades científicas —, o teste de resistência dos democratas se dá quando confrontados com idéias que consideram absurdas, irrealistas, detestáveis até. Aceitar que o outro exponha a sua “verdade”, por mais estúpida que nos pareça, testa a nossa capacidade de conviver com a diferença. Isso não significa, e meu trabalho espelha essa minha postura, que não devamos, nós também, ser, então, “detestáveis” à nossa maneira aos olhos de quem discorda de nós. É preciso dizer com clareza e destemor o que se pensa, e não com o intuito de destruir o outro, de “eliminar a contradição”, de “extirpar” o adversário.

Mas quem não quer a liberdade de expressão? Bem poucas pessoas teriam a coragem de fazer a defesa aberta da censura. Aprendemos todos que não se fazem certas coisas em público, e alinhar-se com os valores democráticos integra o rol das escolhas educadas, decorosas. Assim, raramente, ou nunca, temos a chance de nos defrontar com um inimigo da liberdade de expressão. Eles, no entanto, existem e se manifestam de forma insidiosa — não raro, recorrem a princípios consagrados pela democracia para poder solapá-la.

Uma expressão está na moda, posta para circular, sobretudo, pelas ONGs: os chamados “temas transversais”, aqueles que atravessariam várias esferas da vida e do conhecimento, transformados, em si mesmos, em valores morais inquestionáveis. O tal Programa “Nacional-Socialista” de Direitos Humanos, por exemplo, chegava a prever a cassação da licença de emissoras de rádio e televisão se ficasse caracterizado o desrespeito aos direitos humanos. Notem o truque: quem é contra os “direitos humanos”? Ninguém! Quem iria definir o que caracterizava esse respeito? Ali estava a armadilha.

Os chamados “temas transversais” costumam ser uma espécie de bula do chamado pensamento politicamente correto, que perverte o valor democrático essencial: o direito de a minoria expressar a divergência. Essa derivação pervertida transforma a proteção às minorias numa agressão aos valores universais da democracia. Não é raro ouvirmos hoje magistrados, inclusive alguns da nossa corte suprema, a afirmar que a lei deve, sim, tratar desigualmente os desiguais porque cumpriria ao juiz corrigir injustiças que a sociedade a tempo não corrigiu.

Ora, numa democracia, o princípio que estabelece que todos os homens são iguais perante a lei não busca ofuscar a condição dos graúdos, mas estabelecer uma instância — a Justiça — em que o pequeno não será punido porque pequeno nem poupado de seus crimes; em que o grande não será protegido porque grande, mas também não terá seus direitos aviltados por isso.
Como justificar, por exemplo, a concessão de cotas raciais à luz da Constituição brasileira se não por intermédio de valores, e ninguém conseguiria provar o contrário, ausentes em nossa Constituição? Agride-se o princípio fundamental da igualdade dos homens perante a lei argumentando-se a aplicação dos fundamentos do Artigo 3º, a saber:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

Será lícito, no entanto, aplicar o que prevê os três incisos discriminando pessoas, seja essa discriminação positiva ou negativa? O inciso seguinte do mesmo artigo responde:

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

O debate das cotas, no entanto, foi interditado. O Estatuto da Igualdade Racial aprovado pelo Congresso, embora na sua versão mitigada, coleciona uma penca de agressões à Constituição. Em breve, outro tema voltará ao debate: a chamada lei que criminaliza a homofobia. Não duvido de que as pessoas empenhadas em sua aprovação tenham o propósito de combater a discriminação, mas o texto agride, de maneira inequívoca, a liberdade de expressão. Uma simples opinião que possa ser caracterizada como “ação vexatória de ordem filosófica” — seja lá o que isso signifique — pode render cadeia. O crime será considerado inafiançável e imprescritível.

A patrulha politicamente correta, orientada pelo espírito da reparação e da correção das desigualdades e das injustiças, constitui-se numa verdadeira polícia do pensamento. Agride a liberdade de expressão e, muitas vezes, agride os fatos, impedido até mesmo a avaliação da eficiência de determinadas políticas públicas.

Na entrevista publicada pela VEJA, na semana passada, o professor  americano de economia Walter Williams, negro, afirma:

“Antes, uma menina grávida era uma vergonha para a família. Hoje, o estado de bem-estar social premia esse comportamento. O resultado é que, nos anos da minha adolescência, entre 13% e 15% das crianças negras eram filhas de mãe solteira. Agora, são 70%.”

Por Reinaldo Azevedo


18 - Video: modernização e desenvolvimento social

Pessoal, o professor Rafael Riemma me enviou um excelente video sobre o impacto da modernização/industrialização no desenvolvimento social de diversos países. É um filme pequeno (4 minutos) e bem didático, apresentado na forma de um gráfico muito bem bolado. O link segue abaixo. Não deixem de ver!

domingo, 13 de março de 2011

17 Sociedade justa

Pessoal, segue um texto interessante do filósofo Olavo de Carvalho sobre o ideal de uma “sociedade justa”. Publicado no Diário do Comércio, em 10 de março de 2011, o texto também está disponível no site do autor em http://www.olavodecarvalho.org/index.html?index.htm

Sociedade justa

Outro dia perguntaram qual o meu conceito de uma sociedade justa. A palavra “conceito” entrava aí com um sentido antes americano e pragmatista do que greco-latino. Em vez de designar apenas a fórmula verbal de uma essência ou ente, significava o esquema mental de um plano a ser realizado. Nesse sentido, evidentemente, eu não tinha conceito nenhum de sociedade justa, pois, persuadido de que não cabe a mim trazer ao mundo tão maravilhosa coisa, também não me parecia ocupação proveitosa ficar inventando planos que não tencionava realizar.

O que estava ao meu alcance, em vez disso, era apenas analisar a idéia mesma de “sociedade justa” – o seu conceito no sentido greco-latino do termo – para ver se fazia sentido e se tinha alguma serventia.

Desde logo, os atributos de justiça e injustiça só se aplicam aos entes reais capazes de agir. Um ser humano pode agir, uma empresa pode agir, um grupo político pode agir, mas “a sociedade”, como um todo, não pode. Toda ação subentende a unidade da intenção que a determina, e nenhuma sociedade chega a ter jamais uma unidade de intenções que justifique apontá-la como sujeito concreto de uma ação determinada. A sociedade, como tal, não é um agente: é o terreno, a moldura onde as ações de milhares de agentes, movidos por intenções diversas, produzem resultados que não correspondem integralmente nem mesmo às intenções deles, quanto mais às de um ente genérico chamado “a sociedade”!

“Sociedade justa” não é portanto um conceito descritivo. É uma figura de linguagem, uma metonímia. Por isso mesmo, tem necessariamente uma multiplicidade de sentidos que se superpõem e se mesclam numa confusão indeslindável, que basta para explicar por que os maiores crimes e injustiças do mundo foram praticados, precisamente, em nome da “sociedade justa”. Quando você adota como meta das suas ações uma figura de linguagem imaginando que é um conceito, isto é, quando você se propõe realizar uma coisa que não consegue nem mesmo definir, é fatal que acabe realizando algo de totalmente diverso do que imaginava. Quando isso acontece há choro e ranger de dentes, mas quase sempre o autor da encrenca se esquiva de arcar com suas culpas, apegando-se com tenacidade de caranguejo a uma alegação de boas intenções que, justamente por não corresponderem a nenhuma realidade identificável, são o melhor analgésico para as consciências pouco exigentes.

Se a sociedade, em si, não pode ser justa ou injusta, toda sociedade abrange uma variedade de agentes conscientes que, estes sim, podem praticar ações justas ou injustas. Se algum significado substantivo pode ter a expressão “sociedade justa”, é o de uma sociedade onde os diversos agentes têm meios e disposição para ajudar uns aos outros a evitar atos injustos ou a repará-los quando não puderam ser evitados. Sociedade justa, no fim das contas, significa apenas uma sociedade onde a luta pela justiça é possível. “Meios” quer dizer: poder. Poder legal, decerto, mas não só isso: se você não tem meios econômicos, políticos e culturais de fazer valer a justiça, pouco adianta a lei estar do seu lado. Para haver aquele mínimo de justiça sem o qual a expressão “sociedade justa” seria apenas um belo adorno de crimes nefandos, é preciso que haja uma certa variedade e abundância de meios de poder espalhados pela população em vez de concentrados nas mãos de uma elite iluminada ou sortuda. Porém, se a população mesma não é capaz de criar esses meios e, em vez disso, confia num grupo revolucionário que promete tomá-los de seus atuais detentores e distribuí-los democraticamente, aí é que o reino da injustiça se instala de uma vez por todas. Para distribuir poderes, é preciso primeiro possuí-los: o futuro distribuidor de poderes tem de tornar-se, antes, o detentor monopolístico de todo o poder. E mesmo que depois venha a tentar cumprir sua promessa, a mera condição de distribuidor de poderes continuará fazendo dele, cada vez mais, o senhor absoluto do poder supremo.

Poderes, meios de agir, não podem ser tomados, nem dados, nem emprestados: têm de ser criados. Caso contrário, não são poderes: são símbolos de poder, usados para mascarar a falta de poder efetivo. Quem não tem o poder de criar meios de poder será sempre, na melhor das hipóteses, o escravo do doador ou distribuidor.

Na medida em que a expressão “sociedade justa” pode se transmutar de figura de linguagem em conceito descritivo viável, torna-se claro que uma realidade correspondente a esse conceito só pode existir como obra de um povo dotado de iniciativa e criatividade – um povo cujos atos e empreendimentos sejam variados, inéditos e criativos o bastante para que não possam ser controlados por nenhuma elite, seja de oligarcas acomodados, seja de revolucionários ávidos de poder.

Aquele que deseja sinceramente libertar o seu povo do jugo de uma elite mandante não promete jamais tomar o poder dessa elite para distribuí-lo ao povo: trata, em vez disso, de liberar as forças criativas latentes no espírito do povo, para que este aprenda a gerar seus próprios meios de poder – muitos, variados e imprevisíveis –, minando e diluindo os planos da elite – de qualquer elite – antes que esta possa sequer compreender o que se passou.
                                                                                                                               Olavo de Carvalho

sexta-feira, 4 de março de 2011

16 - O Antigo Regime

Pessoal, segue um texto de minha autoria sobre o Antigo Regime. Utilizem-no como referência para o esquema da aula do mesmo assunto.

1. O Antigo Regime

O termo Antigo Regime surgiu na França, no final do século XVIII, no contexto da Revolução Francesa. Os defensores da revolução formularam o termo em um sentido negativo e crítico (o “antigo” como sinônimo de “atrasado”) para se referir à sociedade francesa pré-revolucionária, caracterizada pelo absolutismo monárquico, por uma ordem social que privilegiava a aristocracia e pela persistência da religiosidade e do poder da Igreja católica – elementos que os revolucionários consideravam ultrapassados e que deveriam ser substituídos por um novo regime moderno, baseado na liberdade, igualdade e tolerância. Com o tempo, o termo Antigo Regime passou a se aplicado sobre as sociedades pré-modernas de uma forma geral, especialmente as sociedades tradicionais européias dos séculos XVII-XIX, virando sinônimo de velha ordem ou ordem tradicional. As principais características do Antigo Regime foram o absolutismo, o regime senhorial, a sociedade de ordens e a intolerância religiosa.

Economia agrária

O Antigo Regime estava baseado em economias fundamentalmente agrárias e pré-industriais. A terra era a principal riqueza e a maioria da população vivia no meio rural, praticando diversas modalidades de agricultura, pecuária ou pastoreio. O setor mais importante era a agricultura mercantil (produção de gêneros agrícolas para o mercado) em razão do crescimento populacional e das cidades (aumento de consumidores urbanos, não-produtores de alimentos) e do desenvolvimento do comércio. A indústria manufatureira (tecnologia pré-mecânica, trabalho manual em equipe), sobretudo de têxteis, avançava fora das cidades, onde a produção industrial era controlada e regulamentada pelas corporações de ofício artesanais.

O Absolutismo

O Absolutismo foi a característica mais famosa do Antigo Regime, a ponto de muitos estudiosos considerarem ambos equivalentes. A monarquia absolutista era um Estado centralizado com uma numerosa burocracia civil e forças armadas, governando sem os entraves das assembléias ou parlamentos medievais, que deixaram de ser convocados ou foram abolidos. Esses corpos representativos reuniram-se pela última vez durante a Idade Moderna na França em 1614, na Bélgica em 1632, no Reino de Nápoles em 1642, em Castela em 1665, em Portugal em 1697-1698 e em Aragão foram abolidos em 1707. Na Inglaterra e na Escócia os parlamentos nunca desapareceram, o que impediu o aparecimento de um efetivo absolutismo sob o Antigo Regime britânico (a monarquia absolutista foi abolida pelo parlamento inglês em 1688-1689 com o triunfo da Revolução Gloriosa). Como a maior parte da burocracia e dos cargos no governo absolutista ficou com a nobreza, muitos estudiosos consideram o Absolutismo um “Estado feudal centralizado”.

O absolutismo era legitimado pela religião (o poder era visto como de origem divina), pela própria tradição feudal (o rei considerado o maior dos suseranos, árbitro supremo, mantenedor da ordem e garantidor dos direitos dos súditos) e pelo direito romano, redescoberto no final da Idade Média, que recuperou o ideal de soberania absoluta inspirada no Dominado do Baixo Império Romano.

Contudo, o absolutismo no Antigo Regime nunca foi total, principalmente na Europa Ocidental, e ele precisa ser compreendido de forma relativa. A monarquia era “absolutista” se comparada às realezas descentralizadas medievais, mas o rei não tinha poder ilimitado sobre os seus súditos ou sobre suas propriedades, como acontecia nos despotismos orientais dos Estados islâmicos (Império Turco Otomano, Pérsia dos Safávidas, Império Mughal na Índia). Os corpos representativos deixaram de ser convocados, mas havia, ainda que em teoria, a possibilidade deles serem restaurados. Ainda assim, no caso dos países europeus que adotaram o absolutismo, a evolução política implicou na superação tanto da tradicional descentralização feudal como do constitucionalismo medieval. O apogeu do Estado absolutista na Europa Ocidental foi nos séculos XVII-XVIII. Seu símbolo foi a monarquia francesa do “Rei-Sol” Luís XIV (1638-1715), famoso pelas frases: “O Estado sou eu” e “É legal porque assim desejo.”

A persistência do regime senhorial

Apesar do declínio do feudalismo nos séculos XVII-XVIII, o sistema senhorial continuou predominando no Antigo Regime, o que assegurou à aristocracia feudal se manter como classe dominante, com vários privilégios (isenção de impostos; monopólio de alguns cargos, sobretudo os militares; justiça e tribunais especiais). A maioria da população era camponesa e trabalhava para a aristocracia como servos (mais na Europa Oriental) ou trabalhadores livres dependentes (mais na Europa Ocidental). Por outro lado, parte da burguesia conseguiu obter alguns cargos, títulos nobiliárquicos e honrarias, vendidos pela Coroa, ávida por recursos financeiros. Isso acabou formando dois tipos de nobrezas no Antigo Regime: a nobreza de espada ou de armas (a aristocracia tradicional de origem medieval e guerreira) e a nobreza de toga (a nova aristocracia, formada pela burguesia enobrecida, geralmente ocupando cargos na burocracia civil).

Sociedade dividida em ordens

No Antigo Regime, sobretudo na Europa continental, se deu a cristalização dos estamentos, estados ou ordens feudais: Primeiro Estado (clero/Igreja), Segundo Estado (nobreza) e Terceiro Estado (povo). A burguesia era membro do Terceiro Estado e não possuía os privilégios da aristocracia feudal (alto clero e pela alta nobreza).

Como na Idade Média, oficialmente a sociedade do Antigo Regime estava organizada de forma estamental ou corporativa, quer dizer, dividida em grupos hierarquizados de acordo com suas funções, em geral transmitidas pelo nascimento. A estratificação desses grupos – conhecidos como estamentos, estados ou ordens  – inspirava-se no antigo conceito de scala naturae (escala natural ou cadeia dos seres), uma estrutura hierárquica imutável supostamente criada por Deus como parte de um plano divino para dar ordem ao universo, reforçada por antigas tradições medievais. A função de cada estamento implicava em determinados direitos, privilégios e honras ou na ausência deles. As ordens superiores, constituídas pela nobreza e clero, possuíam funções mais respeitáveis (atividades guerreiras e religiosas) e eram mais privilegiadas. Por serem grupos fechados, entre as ordens superiores e as ordens inferiores (povo, principalmente camponeses) havia pouca mobilidade social. A imagem era de um corpo social composto por partes interdependentes e desiguais, mas com obrigações recíprocas em uma relação orgânica (como se a sociedade fosse um organismo) que beneficiava a todos e assegurava a estabilidade. Fundamental nessa concepção de sociedade era a idéia de permanência e de aceitação pelos indivíduos do seu papel na estrutura geral. Dessa forma, a ideologia da sociedade de ordens era utilizada para justificar a desigualdade e o poder da aristocracia. A configuração das ordens variava dependendo da sociedade. A da França foi a mais famosa, com a sua divisão em Primeiro Estado (clero/Igreja), Segundo Estado (nobreza) e Terceiro Estado (povo, incluindo a burguesia).

No entanto, havia uma forte tensão entre essa estrutura oficial conservadora e a realidade de uma sociedade em processo de transformação por causa do avanço do comércio, da riqueza monetária e do capital. De fato, a imobilidade não era absoluta. O critério de descendência na transmissão dos direitos e privilégios não podia ser totalmente aplicado, já que a ordem do clero tinha que ser preenchida por membros das outras ordens. Por sua vez, ocasionalmente títulos nobiliárquicos podiam ser comprados por plebeus ricos. Mas as brechas na estrutura estamental apenas beneficiavam uma minoria. No quadro geral, a aristocracia e suas ordens permaneciam como um grupo em grande medida fechado e mais privilegiado.

 Forte religiosidade

Por se tratar de uma sociedade tradicional e pré-moderna (no sentido de ser anterior a modernidade), o Antigo Regime caracterizou-se pela forte religiosidade. A religião não só servia para legitimar o absolutismo e a sociedade de ordens, como era a base para explicar o mundo natural. Apesar da crescente postura revisionista e crítica das interpretações religiosas por parte das elites intelectuais dos séculos XVII e XVIII, a maioria esmagadora da população continuou guiando os seus hábitos, comportamentos e moral pela religião. Com o absolutismo a Igreja ficou subordinada ao poder da monarquia e dependente do seu apoio e proteção, consagrando o velho princípio da cuis regio, eius religio (“De acordo com a sua região, sua religião”) – a fé dos súditos tem que ser a do soberano. A união Estado-Igreja no Antigo Regime implicou na manutenção de uma Igreja oficial (em alguns casos, como na Inglaterra, de uma Igreja nacional) e em uma grande intolerância religiosa. De fato, a monarquia e a Igreja tentavam impor uma forte censura política e religiosa, mas, nos séculos XVII e XVIII, a demanda pela liberdade de pensamento aumentou. Em alguns casos, como na Inglaterra, essa demanda partiu também de grupos religiosos dissidentes, com origem na Reforma Protestante, e contou com respaldo popular. Na maioria das vezes, contudo, a liberdade de pensamento foi resultado do crescimento da mentalidade racionalista e crítica entre as elites letradas, influenciadas pelos desdobramentos da Revolução Científica do século XVII (nascimento da ciência moderna, como a física e astronomia, contrariando dogmas religiosos) e, principalmente, pelo Iluminismo do século XVIII (defesa da Razão e da ciência, condenação da superstição). Nos países que ainda viviam sob o Antigo Regime no século XIX, a bandeira da liberdade de expressão foi assumida pelos defensores do liberalismo e do socialismo.

O mercantilismo

Os Estados europeus dos séculos XVII-XVIII estavam erguidos sobre sociedades tradicionais agrárias em transição para a modernidade capitalista. A terra era o bem mais valorizado e procurado, mas o contexto de guerras endêmicas, de elevação das despesas militares, de crescente custo da máquina administrativa e de expansão do comércio fez da moeda, especialmente as de metais preciosos, outra riqueza imprescindível para a manutenção do Estado. A busca de recursos monetários, mais precisamente de ouro e prata, era uma das principais preocupações dos monarcas e seus ministros na Idade Moderna. O metalismo ou bulionismo (acumulação de metais preciosos) foi reforçado pela crença de que a riqueza do mundo era fixa e que havia um jogo de soma-zero nas relações econômicas entre os países – para um país ganhar o outro teria que perder. A lógica dessa idéia baseava-se no fato do tesouro do Estado ser identificado com a quantidade de ouro e a prata disponível, bens que não podiam ser criados ou reproduzidos, mas extraídos diretamente da natureza, onde tendiam a se esgotar. Esse pensamento desenvolveu-se associado a uma tradição pré-capitalista que remontava ao Império Romano de ter a economia regulamentada pelo governo. A combinação desses fatores resultou no mercantilismo, a política econômica intervencionista dos Estados europeus da Idade Moderna, fossem eles monarquias absolutistas, monarquias parlamentares ou repúblicas oligárquicas.

Apesar da diversidade do mercantilismo, algumas idéias e medidas foram comuns a todos os países europeus. A intervenção do Estado na economia foi um aspecto essencial e generalizado da política mercantilista. O dirigismo governamental foi mais um meio do que um objetivo em si, uma necessidade de sobrevivência em um mundo de competição entre Estados por riquezas limitadas. Com efeito, a tese da soma-zero do metalismo teve vários corolários, todos buscando meios de transferir a riqueza dos outros para o seu próprio país, onde ela poderia ser mais facilmente apropriada pelo Estado por meio da taxação da população. A busca do superávit na balança comercial foi uma das estratégias mais disseminadas. Uma medida nesse sentido era o protecionismo, estabelecido por meio da elevação das tarifas alfandegárias para reduzir as importações e, com isso, diminuir o envio de moeda para o exterior. Em alguns casos a estratégia comercial foi acompanhada de incentivos às manufaturas de exportação, principalmente de produtos de luxo. Outra prática mercantilista usual foi o estabelecimento de monopólios, como os concedidos a grupos privilegiados de mercadores organizados em Companhias de Comércio com fortes ligações com o governo. A regulamentação das atividades econômicas foi outra norma, na verdade mais intensa nas cidades, onde a fiscalização era menos difícil, a circulação de moeda era maior e as tradições medievais de guildas e corporações de ofício (associações monopolistas de artesãos ou de comerciantes) foram preservadas.

Na Europa Atlântica (Portugal, Espanha, França, Grã-Bretanha, Países Baixos), o mercantilismo esteve também associado ao colonialismo, mais precisamente na criação do que se convencionou chamar de “antigo sistema colonial”, voltado para o estabelecimento de colônias ultramarinas fornecedoras de metais preciosos e gêneros tropicais, como o açúcar. No colonialismo mercantilista as metrópoles européias tentaram impor um rígido controle administrativo e comercial sobre seus impérios coloniais, especialmente na América, onde foram estabelecidos sistemas econômicos que produziam matérias-primas por meio do trabalho compulsório de índios nativos e negros trazidos da África. As práticas regulamentadoras também foram adotadas nas colônias, destacando-se o “pacto-colonial” ou “exclusivo comercial” – o monopólio que a metrópole possuía no comércio externo da colônia. Nos séculos XVII-XVIII, o antigo sistema colonial havia se transformado em um pilar econômico fundamental da Europa Atlântica, objeto de uma série de guerras pelo controle dos territórios ultramarinos e de suas riquezas.

Sugestões de leituras. Em português, três boas introduções ao tema são os livros O Antigo Regime, de William Doyle (“Série Princípios” 214, Editora Ática, 1991), O Absolutismo – Política e Sociedade na Europa Moderna, de Marcos Antonio Lopes (“Coleção Tudo é História”, Editora Brasiliense, 1996) e Mercantilismo e Transição, de Francisco Falcon (“Coleção Tudo é História”, Editora Brasiliense, 1981).