O Iluminismo
1. Significado
O Iluminismo,
Ilustração ou Filosofia das Luzes foi um conjunto de ideias e
atitudes que caracterizou a cultura das elites letradas da classe média, da
burguesia e de parte da nobreza do Ocidente no século XVIII. Embora ele costume
ser associado à cultura francesa – onde seus teóricos eram conhecidos
genericamente como philosophes –
o Iluminismo foi um fenômeno intelectual ocidental, presente em outros
países da Europa e na América, sobretudo nas Treze Colônias britânicas. O
Iluminismo foi a origem ideológica da modernidade, entendida, no seu aspecto
cultural, como o pensamento secular baseado no conhecimento racional da
realidade e na fé no progresso gerado pela ação humana.
2. Características gerais do
Iluminismo
Como um
pensamento, o Iluminismo foi complexo e diversificado, mas alguns pontos comuns
podem ser apontados entre suas várias correntes:
O
racionalismo
O
racionalismo é a crença de que os fenômenos do universo, da natureza e da
sociedade podem ser compreendidos racionalmente, isto é, por meio da Razão.
Segundo os iluministas, a verdade deve ser descoberta por meio da inteligência,
da crítica e da análise científica da realidade. As explicações sobre o mundo e
as relações humanas inspiradas em princípios religiosos e metafísicos deviam
ser rejeitadas pelo seu conteúdo irracional e supersticioso, que desviava a
humanidade do conhecimento verdadeiro e da felicidade. Entre muitos
iluministas, essa postura intelectual assumiu uma forma de racionalismo crítico: a aplicação da Razão às questões econômicas,
sociais e políticas, que precisavam ser revistas visando à transformação da
realidade. Os iluministas acreditavam que estavam levando a luz da Razão a uma
humanidade encoberta pelas forças da ignorância, da superstição e do atraso.
A defesa da
liberdade intelectual do indivíduo
Os
iluministas destacaram-se pela ênfase na liberdade intelectual do indivíduo.
Afirmavam que o conhecimento racional e a consciência individual, para serem
adquiridos, precisavam da liberdade de pensamento, de opinião e de crítica.
Isso implicou na condenação da censura, da superstição e dos dogmas da
sociedade tradicional.
Crença no contrato social
Os
iluministas rejeitavam qualquer autoridade que não pudesse ser justificada pela
Razão. Repudiando a doutrina da origem divina do poder monárquico, os
iluministas, em sua maioria, abraçaram a teoria do contrato social ou
contratualismo, que afirma que o Estado foi criado pela sociedade e não por
Deus. Mais precisamente, o contrato social acredita que o governo legítimo é
resultado de um acordo voluntário entre as pessoas: os homens voluntariamente
criaram o governo e lhe entregaram o poder porque precisam dele como garantidor
da ordem. Portanto, não existe uma autoridade política “natural” ou “sagrada”.
Ela é uma criação artificial e só existe porque tem o consentimento da
sociedade. As noções mais remotas do contratualismo encontram-se na Grécia
antiga com o conceito de polis e de governo eleito pelos cidadãos. Traços da
teoria do contrato social também podem ser encontrados na Idade Média e na
Renascença. Mas a época clássica da elaboração do contratualismo foi o período
de 1650-1800, iniciado com a obra Leviatã
(1651) de Thomas Hobbes, que produziu uma sofisticada teoria do contrato social
em bases racionalistas. Embora o contratualismo de Hobbes tenha sido utilizado
para justificar o absolutismo, sua teoria exerceu uma enorme influência sobre o
Iluminismo, que acabou adaptando-a a noção de direto à liberdade individual.
O ideal de
progresso e a busca da felicidade
A convicção
de que, por meio do conhecimento racional, é possível transformar
conscientemente e de forma sistemática a natureza, as instituições e a
sociedade em benefício da maioria da população, criando um mundo melhor e mais
avançado, com um nível sempre crescente de felicidade geral.
A postura
diante de Deus e da religião
Por se tratar de um pensamento heterogêneo, ainda que unido pelo
racionalismo, o Iluminismo não estabeleceu uma atitude única ou comum diante da
existência de Deus e do papel da religião. De fato, a postura crítica dos
iluministas tendia a levá-los a condenar os dogmas religiosos, o poder da
Igreja e os privilégios do clero sobre a cultura de sua época, sobretudo nos
países católicos, onde a intolerância e a censura eram maiores. Mas isso não significava
necessariamente que o Iluminismo fosse, em sua essência, partidário do ateísmo
(doutrina que nega a existência de Deus). Embora alguns iluministas tenham sido
ateus, a maioria assumiu outras posições que buscavam conciliar o racionalismo,
a crítica e a tradição religiosa cristã, sobretudo o seu humanitarismo. Como
assinalou um historiador:
A perspectiva dos philosophes foi
permeada por um espírito humanitário, que em parte se devia, sem dúvida, à
compaixão cristã. Esse espírito se manifestou nos ataques à tortura –
freqüentemente utilizada em muitos países europeus como meio de se obterem
confissões – às punições cruéis a que eram submetidos os criminosos, à
escravidão e à guerra. O humanitarismo dos philosophes apoiava-se na convicção
de que eram capazes de sentimentos bondosos uns em relação aos outros.1
De fato,
muitos iluministas continuaram partidários do cristianismo, principalmente nos
países protestantes. Na França e em outros países católicos, onde a presença da
Igreja era considerada mais opressora, os iluministas afastaram-se da religião
organizada e adotaram o deísmo
(crença em Deus, porém rejeitando os dogmas, os rituais, o culto e o clero) e o
agnosticismo (postura que considera
inacessível ou incognoscível ao entendimento humano a compreensão da existência
de Deus).
O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) considerava que a
característica essencial do Iluminismo era a emancipação humana da superstição
e da ignorância. No ensaio “Uma Resposta
à Questão: O que é o Iluminismo?” (1784), Kant escreveu
O Iluminismo representa a saída do homem
de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a
incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo.
O homem é o próprio culpado dessa
menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na
falta de decisão e coragem de servir-se
de si mesmo sem a direção de outrem.
Sapere aude! Tem coragem para fazer uso do teu próprio entendimento! - esse é o
lema do Iluminismo.
A preguiça
e a vileza são as causas pelas quais tão grande parte dos homens ainda
permanecem de bom grado em estado de menoridade por toda a vida; e esta é a
razão pela qual é tão fácil que outros se erijam como seus tutores. É tão
cômodo ser tutelado! Se eu tiver um livro que pensa por mim, um diretor
espiritual que tem consciência por mim, um médico que decide por mim sobre a
dieta que me convém etc., não terei mais necessidade de me preocupar por mim
mesmo.
3. Origens
do Iluminismo
As origens
do Iluminismo remontam ao Renascimento Cultural dos séculos XIV-XVI, com o humanismo
e o resgate das tradições antropocêntricas e racionalistas da Antiguidade
Clássica, mas a sua antecessora imediata foi a Revolução Científica dos
séculos XVI-XVII, responsável pelo desenvolvimento do método experimental e do
espírito crítico, resultando no aperfeiçoamento da matemática e no nascimento
das ciências naturais, sobretudo a astronomia e a física (obras de Nicolau Copérnico, 1473-1543; Galileu Galilei, 1554-1642; Johannes Kepler, 1571-1630; Blaise
Pascal, 1623-1662; Robert Boyle,
1627-1691, e Isaac Newton, 1642-1727). Paralelamente a Revolução
Científica, e por ela influenciada, são lançados os fundamentos da filosofia
moderna (pensamento de Francis Bacon,
1561-1626; René Descartes, 1596-1650; Baruch Spinoza, 1632-1677). Como na Renascença, os iluministas
inspiraram-se na antiga cultura clássica greco-romana, mas adaptaram sua visão
da Antiguidade ao racionalismo e às descobertas científicas do século XVII. A
história e a política da Grécia e de Roma exerceram um enorme fascínio nos
iluministas, constituindo objeto de estudo ou de referência para diversos
pensadores, como Montesquieu e Rousseau. O Iluminismo estava, assim, inserido
em um contexto cultural mais amplo das elites européias, fortemente marcado
pelo avanço do racionalismo combinado com a admiração pelos gregos e romanos.
Esse período da história do Ocidente, entre 1650 e 1800, englobando a Revolução
Científica e o Iluminismo, costuma ser chamado de Era da Razão.
4. Destaques
do Iluminismo
O Iluminismo abrangeu todas as áreas do conhecimento
racional e das artes do Ocidente no século XVIII. É possível, assim, reunir os
pensadores e cientistas iluministas por áreas de atuação, embora muitos tenham
atuado simultaneamente em diversos ramos das ciências e da cultura artística.
Na filosofia, por exemplo, os nomes mais destacados foram de John Locke (1632-1704),
Gottfried Liebniz (1646-1716), David Hume (1711-1776), Claude
Adrien Helvétius (1715-1771) e Immanuel Kant (1724-1804). Nas
ciências naturais, destacaram-se Isaac Newton (1642-1727), Conde de
Buffon (1707-1788), Joseph Priestley (1733-1804), Charles-Augustinde
Coulomb (1736-1804), Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829), Antoine
Lavoisier (1743-1794) e Pierre Simon Laplace (1749-1827). Na
História, o grande nome foi o de Edward Gibbon (1737-1794), autor da
monumental A História do Declínio e Queda
do Império Romano (1776-1788). Do ponto de vista do pensamento político,
social e econômico os principais pensadores iluministas podem ser agrupados em
um grupo de linha "liberal" e em grupo de linha
"socialista".
4.1
Os iluministas "liberais"
Foram pensadores iluministas que contribuíram para o
desenvolvimento do liberalismo ou doutrina liberal, que enfatiza os direitos
naturais do indivíduo (vida, propriedade, liberdade), a isonomia (direitos
iguais), o governo representativo constitucional (limitado pela lei), a
tolerância ideológica (respeitar as ideias do outro) e a liberdade econômica
(livre iniciativa, livre comércio, não intervenção governamental na economia).
Esses iluministas não concordavam necessariamente com todas essas ideias em
conjunto. Suas obras, porém, foram determinantes para a elaboração do pensamento
liberal, concluído, em suas linhas gerais, no início do século XIX.
John Locke
(1632-1704)
Britânico,
defensor da Revolução Gloriosa (1688-1689) e da criação da monarquia
constitucional, Locke costuma ser considerado o precursor do Iluminismo e “pai”
do liberalismo político. Representante do empirismo britânico, no Ensaio
Sobre o Entendimento Humano (1690), condena a doutrina das ideias inatas de
Descartes, afirma que a mente humana (a “alma”) é uma tábula rasa (tábua
sem inscrições, quer dizer, sem idéias inerentes) e que o conhecimento vem da
experiência e da observação. Nos Dois Tratados Sobre o Governo (1689),
afirma que as pessoas são em sua essência boas e que todas nascem com o direito
natural à vida, liberdade e propriedade. O Estado foi criado pelos homens para
proteger esses direitos e o poder de governar deriva do consentimento dos
governados, com sua autoridade limitada pela lei. Se o governo vira uma tirania
e oprime os indivíduos, ele age ilegalmente; nesse caso, o povo tem o direito
de se rebelar e constituir um novo governo, compatível com os direitos
naturais. Locke foi um dos primeiros teóricos a propor a divisão de poderes em
três tipos: o “poder legislativo” (o principal, responsável pela elaboração das
leis para o bem da sociedade), o “poder executivo” (executor das leis) e o
“poder federativo” (diplomático, tratando das relações com outros Estados
visando a segurança da sociedade).
Pierre Bayle (1647-1706)
Calvinista
francês, Bayle foi um renomado professor de filosofia que, para escapar da
censura na França, refugiou-se na Holanda (1682), onde escreveu uma série de
livros. A sua obra mais importante foi o Dicionário
Histórico e Crítico (1697) que antecipou a famosa Enciclopédia de Diderot. Dono de uma impressionante erudição, Bayle
destacou-se pela defesa da tolerância e da liberdade de crítica. Suas idéias
exerceram uma enorme influência sobre o Iluminismo. A seu respeito, Voltaire
comentou: “O maior mestre que já escreveu sobre a arte de raciocínio, Bayle,
grande e sábio, todos os sistemas derrubou”.
Montesquieu
(1689-1755)
O francês
Charles Louis de Secondat ou Barão de Montesquieu ficou famoso pela obra O
Espírito das Leis (1748), com a defesa da monarquia constitucional de
modelo britânico e a teoria dos “pesos e contrapesos” – a divisão de poderes
(executivo, legislativo e judiciário) para impedir o absolutismo, aperfeiçoando
as idéias de Locke. Um dos livros políticos mais importantes de todos os
tempos, O Espírito das Leis exerceu
uma grande influência na criação dos regimes políticos da Idade Contemporânea,
começando pela república dos EUA, que incorporou as idéias de Montesquieu sobre
a divisão de poderes na sua constituição. Montesquieu propôs também a reforma
dos códigos de lei para regular os crimes, com punições humanas, destacando-se
por ter sido um dos primeiros a defender a abolição da tortura.
Voltaire
(1694-1778)
Escritor,
propagandista e polemista francês, François Marie Arouet de Voltaire foi o mais
famoso intelectual iluminista, embora não tenha desenvolvido uma teoria ou um estudo
político sistemático. Voltaire destacou-se na defesa da liberdade de expressão
e na condenação de todas as formas de opressão. É dele a famosa frase: “Posso
não concordar com uma palavra do que você diz, mas defenderei até a morte o seu
direito de dizê-lo”. Embora fosse um grande admirador das liberdades e do
regime parlamentar da Grã-Bretanha (o “espelho da liberdade”), Voltaire não considerava
que a França devesse adotar o sistema político britânico. Para ele, uma
monarquia centralizada e forte poderia ser boa, justa e progressista – idéia
que acabou associando-o ao despotismo
esclarecido. De fato, Voltaire tentou orientar o rei absolutista Frederico
II da Prússia na adoção de reformas modernizadoras, mas fracassou. De toda
forma, ele achava que as verdadeiras fontes de opressão, de intolerância e de
atraso na França eram a nobreza, a Igreja e as cortes soberanas de justiça ou parlements (que eram distintas do
parlamento legislativo britânico). Essas “relíquias medievais”, dizia, impediam
o estabelecimento de um governo monárquico eficiente capaz de modernizar o
país. Crítico feroz da aristocracia e da Igreja, Voltaire condenou os abusos dos
sacerdotes, com forte espírito anticlerical. Voltaire foi o mais famoso deísta
do Iluminismo.
Rousseau
(1712-1778)
De origem
suíça e formação calvinista (converteu-se depois ao catolicismo), Jean-Jacques Rousseau
é considerado o "pai da democracia moderna", destacando-se pela
defesa da soberania popular. Suas obras mais famosas foram o Discurso Sobre
a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens (1755) e O Contrato Social (1762). Mas ele
considerava Emílio, ou da Educação
(1762), que aborda a relação entre o indivíduo e a sociedade, o seu livro mais
importante. Rousseau acreditava que o homem é bom por natureza, mas corrompido
pela sociedade. No entanto, por meio de uma educação eficiente, o “homem
natural” poderia conviver com a sociedade corrupta. No Discurso Sobre a Desigualdade, reconheceu que a propriedade privada
era a origem das desigualdades sociais: “O primeiro que, tendo posto uma cerca
no terreno, se lembrou de dizer: ‘Isto é meu’, e encontrou pessoas bastante
simples para o acreditarem, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil.” A
propriedade privada não era um direito natural, dizia, mas um fato histórico,
resultado do desenvolvimento da sociedade. Propôs corrigir a injustiça social,
mas não abolir a propriedade, que considerava um direito concedido pela lei
civil. O ideal eram reformas que alcançassem um ponto de equilíbrio na
sociedade (“Querem dar consistência ao Estado? Aproximem os graus extremos
tanto quanto for possível: não suportem gente opulenta nem esfarrapada”).
Rousseau inicia O Contrato Social com
a célebre frase “O homem nasce livre e por toda parte se encontra acorrentado”.
Admirador da antiga polis grega e do espírito comunitário dos seus cidadãos,
Rousseau propunha a criação de um regime democrático, governado de acordo com a
“vontade geral” do povo, em que
o indivíduo renunciaria aos seus interesses particulares em benefício de toda a
comunidade. Essa vontade geral seria baseada no bom senso e na razão, e
pressupunha a existência de cidadãos conscientes, justos e esclarecidos,
dotados do espírito público, e da igualdade de direitos. Entretanto, as idéias
políticas de Rousseau foram alvo de uma dupla interpretação: enquanto a
soberania popular pode ser entendida como uma defesa da democracia, ela também
pode implicar em um regime coletivista de linha totalitária, onde um Estado
controlado por supostos representantes dos interesses ou da vontade geral
sufoca as liberdades individuais.
Raynal
(1713-1796)
O francês Guillaume Thomas François Raynal ou Abade Raynal, um ex-padre,
foi autor de um importante livro: História
Filosófica e Política dos Estabelecimentos e do Comércio dos Europeus nas Duas
Índias (1770), em quatro volumes, que contou com a colaboração, entre
outros, de Diderot. A obra foi um enorme sucesso e ficou famosa pelas suas
críticas ao absolutismo, ao clero e, principalmente, pelo seu conteúdo
anticolonialista e anti-escravista, ficando conhecida como a “Bíblia do
anticolonialismo iluminista”. A História
das Duas Índias foi proibida na França, Espanha e Portugal e entrou no
Índex de livros proibidos pela Igreja. O livro de Raynal circulou clandestinamente
nas colônias ibéricas na América. Nas investigações sobre a Inconfidência
Mineira (1789), as autoridades portuguesas descobriram exemplares da obra com
os inconfidentes. Conta-se que Napoleão Bonaparte afirmou ser um “discípulo
zeloso de Raynal”.
A
Enciclopédia (1751-1780)
Obra
coletiva, reunindo e sintetizando o pensamento iluminista em 35 volumes, com
mais de 71.800 artigos, a Enciclopédia
foi organizada por Denis Diderot (1713-1784) e Jean Le Rond D’Alembert
(1717-1783), e contou com a colaboração de cerca de 150 autores, entre eles
Montesquieu, Voltaire, Rousseau, Quesnay e o Barão de Holbach. A obra
inspirou-se na Cyclopedia ou Dicionário
Universal das Artes e das Ciências (1704), do inglês Ephraim Chambers (1680-1740). Apesar dos problemas com a censura
francesa e de ter sido condenada pelo papa Clemente XIII, a Enciclopédia expôs e difundiu o
Iluminismo e levou seus autores e colaboradores a ficarem conhecidos como “enciclopedistas”.
A
fisiocracia
Os fisiocratas lançaram as
bases teóricas da doutrina econômica liberal (defesa da propriedade privada, da
liberdade econômica, da redução das taxas), junto com a famosa máxima Laissez-faire,
laissez-passer (“Deixai
fazer, deixai passar”). Seu principal expoente foi François Quesnay
(1694-1774), autor do Tableau Economique (1758).
A escola fisiocrata considerava que a principal fonte de riqueza de um país era
a terra (Natureza), mais precisamente a atividade agrícola, e viam a indústria
e o comércio como atividades secundárias
a ela subordinadas,
que apenas transformavam
e distribuíam os
produtos da agricultura
Adam Smith
(1723-1790)
Economista
escocês, Adam Smith foi o mais importante
pioneiro da ciência econômica (a “economia política”) na visão liberal
clássica. Sua obra mais célebre foi “Uma
Investigação Sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações” (1776).
Smith rejeitou o intervencionismo estatal na economia decorrente do
mercantilismo, um conjunto de teorias e práticas econômicas típicas de sua
época. O mercantilismo já tinha sido criticado por economistas “protoliberais”
predecessores de Smith, como o inglês William Petty (1623-1687) e,
principalmente, os fisiocratas franceses. Smith reconheceu o mérito dos
fisiocratas na defesa do individualismo e da liberdade econômica, bem como na elaboração
de uma teoria que explicava a criação da riqueza a partir da produção e não
apenas da circulação (comércio). No entanto, ele discordou da tese de que a
riqueza de um país estaria necessariamente na agricultura. Para Smith, essa
riqueza dependeria do trabalho e da sua divisão ou especialização, isto é, da capacidade
e organização produtiva de um país. A divisão do trabalho (divisão de tarefas e
especialização das atividades) é responsável pelo crescimento qualitativo da
produção, mas isso depende também de um contexto de liberdade econômica em
escala nacional e global. O comércio internacional não pode sofrer restrições
(como, por exemplo, de monopólios coloniais mercantilistas ou taxações
protecionistas exageradas), sob o risco de afetar o fluxo de mercadorias entre
os países e limitar o progresso geral. Uma economia eficiente seria aquela que
combinasse a divisão de trabalho, a disponibilidade de capitais e um mercado
amplo com a garantia de liberdade para os homens conduzirem os seus próprios
negócios. Para justificar o ideal do laissez-faire,
Smith elaborou o conceito da “mão
invisível” que naturalmente coordenaria o mercado: movidos pelos seus
interesses pessoais, os indivíduos são conduzidos por uma mão invisível a obter
resultados que não estavam originalmente em seus planos, mas que acabam
beneficiando a sociedade como um todo. Se os consumidores tiverem liberdade
para escolher e comprar e se os produtores possuírem liberdade para produzir e
vender, a produção e os preços serão estabelecidos de forma natural em um
mercado autorregulado favorecendo a sociedade.
D’Holbach (1723-1789)
Alemão que
passou a maior parte de sua vida na França, Paul Heinrich Dietrich ou Barão d’Holbach, foi um famoso ateu. Seu
livro mais destacado foi O Sistema da
Natureza (1770), onde ele descreve o universo sob a ótica do materialismo.
Holbach negava a existência de Deus (afirmava que a crença nele era decorrência
do medo humano), da alma e do livre-arbítrio. Crítico dos abusos do poder dos monarcas,
ele foi contra a ação revolucionária, por temer a as massas iletradas, e
defendeu reformas dirigidas pela elite culta.
Marquês de Condorcet (1743-1794)
O pensamento
do francês Jean-Antoine-Nicolas Caritat ou Condorcet, encarnou como poucos, o espírito
da Filosofia das Luzes. Matemático (desenvolveu a teoria das probabilidades),
filósofo e cientista político, Condorcet foi um dos grandes defensores da
economia de mercado, do constitucionalismo, da educação pública e livre, da
abolição da escravidão e da igualdade de direitos para as mulheres e para todos
os povos, independente de sua raça.
4.2 Os iluministas
"socialistas"
Os iluministas "liberais" são os mais
famosos pensadores do Iluminismo, o que levou muitos a identificar Iluminismo
com liberalismo. Contudo, muitos iluministas foram críticos da propriedade
privada e da desigualdade social, defendendo uma nova sociedade igualitária e
coletivista de feições comunistas ou socialistas, antecipando as ideias do
comunismo ou socialismo do século XIX. Em geral, esses iluministas eram também
ateus (não acreditavam na existência de Deus), uma postura materialista que
também caracterizou a maioria das doutrinas comunistas ou socialistas
posteriores.
Jean Meslier (1664-1729)
Padre francês,
após sua morte foi descoberta uma obra oculta de sua autoria, Memórias dos Pensamentos e Sentimentos de
Jean Meslier, mais conhecida como Testamento,
que revelou ser Meslier um ateu e comunista. Uma versão adulterada por
Voltaire, em que o ateísmo de Meslier foi substituído pelo deísmo, foi a
primeira que circulou (1761). Apenas no século XIX a versão original foi
integralmente publicada. Em uma visão dualista, Meslier opunha a miséria dos
camponeses franceses à riqueza dos ricos e poderosos, uma desigualdade que
considerava injustificável e contrária à lei natural: “Porque de modo algum se
apóia no mérito de uns, nem no pouco merecimento de outros. Todos os homens são
iguais pela natureza, todos têm igualmente o direito de viver e de caminhar sobre
a terra, de nela gozarem igualmente a sua liberdade natural, e terem parte nos
bens terrenos”. Meslier denunciou a nobreza e o clero como parasitas sociais e
condenou a propriedade privada (“um abuso”), propondo em seu lugar a comunidade
de bens (“Todos deveriam possuí-las em comum e todos igualmente as deveriam
usufruir em comum”), onde o trabalho seria obrigatório (“Todos à tarefa”).
Caberia ao povo lutar pela criação da nova sociedade: “Uni-vos, pois, povos, se
sois sábios. Uni-vos todos se tendes ânimo para vos libertar de todas as vossas
comuns misérias”. Talvez a sua frase mais famosa foi a do homem que “queria que
todos os grandes homens e toda a nobreza do mundo pudesse ser enforcada e
estrangulada com as tripas dos sacerdotes” (Diderot adaptou a frase para uma
versão mais conhecida: “E com as tripas do último sacerdote vamos estrangular o
pescoço do último rei.”).
Mably (1709-1785)
Gabriel
Bonnot de Mably, francês, irmão de Condillac, foi um dos escritores mais
populares do século XVIII, mas mergulhou na obscuridade no século XX. Entre
suas obras destaca-se a Conversações com
Phocion (1763), onde afirmou que as origens de todos os males da humanidade
estava nas paixões ou desejos, que estabeleceram o direito individual em
detrimento do interesse público. Mably foi outro iluminista que condenou a
propriedade privada, contrária, segundo ele, a ordem natural. Foi também um
crítico do comércio (“uma espécie de monstro que por suas próprias mãos se
destrói”). Mas seus trabalhos mais influentes foram publicados postumamente:
uma versão ampliada da História da França
(o original é de 1765) e o Dos Direitos e
Deveres do Cidadão (escrito em 1758). Ambos tiveram um grande impacto no
início da Revolução Francesa por defenderem o estabelecimento de uma assembléia
legislativa soberana.
Morelly
(1717-?)
Misterioso pensador francês, do qual pouco se sabe, Étienne-Gabriel
Morelly foi junto com Meslier representante do grupo comunista utópico do
Iluminismo. Sua obra mais célebre foi o Código
da Natureza (1755), onde condena o desejo humano de ter (“a base de todos
os nossos vícios”) e propõe a criação de um novo regime sem propriedade privada
e com a sociedade dividida em “classes de trabalho” em um sistema racional e
equilibrado de distribuição, beneficiado pelo progresso da ciência.
William
Godwin (1756-1839)
O inglês Godwin foi um dos precursores do anarquismo. Em meio a Revolução
Francesa, escreveu a sua principal obra política, Inquérito Acerca da Justiça Política e sua Influência na Virtude e
Felicidade Geral (1793), onde afirmou que naturalmente a sociedade iria
evoluir por causa da racionalidade humana. Condenou o Estado, mas não defendeu
uma revolução. No Inquérito, expôs
também sua visão sobre o funcionamento de uma sociedade anarquista.
5. O
Despotismo Esclarecido
“Despotismo
esclarecido” era uma monarquia absolutista que aceitava os princípios racionais
do Iluminismo para modernizar o Estado, permitindo uma maior racionalização
administrativa. Conhecido também como absolutismo “ilustrado”, “iluminado” ou
“benevolente”, o despotismo esclarecido tinha objetivo de fortalecer a própria
monarquia com a codificação de leis e o estabelecimento de forças militares
mais capacitadas e um sistema tributário mais eficiente. Em alguns casos,
medidas de tolerância religiosa foram adotadas, principalmente na Europa
Oriental (liberdade para os protestantes na Rússia e Áustria e para os
católicos na Prússia). Os principais exemplos de despotismo esclarecido foram o
reinado da czarina Catarina II na
Rússia (1762-1796), do rei Frederico II
na Prússia (1740-1786), do imperador José
II na Áustria (1780-1790), do rei Carlos
III na Espanha (1759-1788) e o governo do primeiro-ministro Marquês de Pombal (1750-1777), do rei José I de Portugal.
6. A difusão do Iluminismo
O termo iluminista pode ser utilizado em dois sentidos no contexto
do século XVIII. Em primeiro lugar, ele se refere aos teóricos do Iluminismo, quer dizer, aos autores de obras que desenvolveram
e difundiram o pensamento iluminista, como os philosophes Montesquieu, Voltaire ou Rousseau. Em segundo lugar,
iluministas também são as pessoas comuns
de diversos estratos sociais que adotaram as idéias do Iluminismo, ou seja, que
foram influenciadas por elas em suas atitudes diante do mundo do século XVIII
(por exemplo, em sua visão da sociedade, da política, do conhecimento e da
religião). Na maioria dos casos, essas pessoas comuns eram indivíduos letrados
e com instrução, que tinham condições de ler e discutir a Filosofia das Luzes.
Além da própria nobreza e do clero, as pessoas cultas pertenciam, em geral, aos
grupos urbanos, como a burguesia e a classe média de advogados, médicos,
engenheiros, arquitetos, professores e pequenos lojistas, entre outros. Esses
setores urbanos costumam ser vistos como os principais seguidores do pensamento
iluminista, razão de muitos estudiosos considerarem que o Iluminismo foi uma “mentalidade
da burguesia em ascensão”, marcada pela ênfase na liberdade e no individualismo.
Na verdade, o Iluminismo encontrou seguidores em todas as camadas sociais, mas
ficou mais concentrado junto às elites políticas e econômicas e à classe média
das cidades.
Nos países onde a liberdade de expressão já era considerável para os padrões
da época, como na Grã-Bretanha, Treze Colônias e Países Baixos, a mentalidade
iluminista foi propagada mais facilmente pela livre circulação de livros e
jornais. Nos países absolutistas, sobretudo nos católicos, a censura era mais
forte e muitas obras circularam clandestinamente. Em todos os países, a maçonaria
ou franco-maçonaria (sociedade semi-secreta voltada para a prática de
fraternidade e da filantropia entre seus membros) foi um importante instrumento
de difusão do Iluminismo. Na França, dois focos de divulgação e discussão da
Filosofia das Luzes se destacaram: os salões literários e as academias. Os
salões literários surgiram no século XVII como locais de reuniões das
elites eruditas em residências ou hotéis, geralmente da aristocracia. Em muitos
casos eram mulheres da alta sociedade que patrocinavam esses encontros, como Madame
de Deffand (Marie Anne de Vichy-Chamrond, 1697-1780), Madame Geoffrin
(Marie Thérèse Rodet Geoffrin, 1699-1777), Madame Helvétius
(Anne-Catherine de Ligniville, 1722-1800) e Madame Necker (Suzanne
Curchod, 1737-1794), mãe de outra famosa organizadora de salões, a escritora Madame
de Staël (Anne Louise Germaine de Staël-Holstein, 1766-1817). Os salões
eram freqüentados pelos principais teóricos do Iluminismo, possibilitando que
debatessem suas idéias diretamente com membros da nobreza e da burguesia. Já as
academias eram instituições de pesquisa e de conhecimento que davam aos
seus associados um alto prestígio. Duas modalidades de academias emergiram na
França no século XVII e floresceram no século XVIII: as academias de artes e as
academias de ciências, ambas patrocinadas pelo Estado. Na verdade, a
Grã-Bretanha foi pioneira na construção da moderna academia de ciências, com a
fundação da Royal Society de Londres (1660), influenciando sua similar
francesa. Em 1666, Luis XIV fundou a Academia de Ciências de Paris e patrocinou
a criação de uma academia de pintura e escultura (1699) e uma instituição de
arquitetura (1671). Especialmente no caso das academias de ciências, o desenvolvimento
e difusão do conhecimento científico e dos valores do racionalismo ganharam um
enorme impulso, contribuindo para a formação de uma mentalidade crítica que
buscava rever diversos dogmas ou certezas da época.
Apesar de seu caráter mais elitista, compartilhado pela aristocracia
progressista, pela burguesia e pela classe média, o Iluminismo gerou também uma
versão vulgar e popular que enfatizava a crítica aos privilégios e hábitos da
nobreza e da monarquia, muitas vezes destacando as (supostas) depravações
sexuais da aristocracia. Difundido por meio de panfletos entre os setores mais
pobres e marginalizados das cidades, principalmente na França, essa modalidade
de Iluminismo contribuiu para a formação de um clima politicamente hostil ao
Antigo Regime e favorável à transformação da sociedade.
Contudo, como em todas as ideologias, as pessoas comuns partidárias do
Iluminismo raramente moldaram sua visão de mundo seguindo exclusivamente as
idéias iluministas. Elas podem ser chamadas de iluministas por adotarem as proposições básicas do Iluminismo, como o
conhecimento racionalista, a defesa da liberdade intelectual e a fé no
progresso. Na prática, elas adaptaram essas idéias a outras, o que explica
porque antigas tradições continuaram sendo amplamente aceitas, como a religião.
Essa conciliação (mais corretamente a tentativa de conciliação) entre o novo e
o antigo ou tradicional também pode ser encontrada entre os philosophes do Século das Luzes,
refletida em algumas contradições e limites intelectuais de suas obras, como na
questão do racionalismo crítico diante da religião ou da monarquia.
7. Iluminismo e as mulheres
O Iluminismo
foi ambíguo em relação às mulheres. A defesa da liberdade e da igualdade, e as
discussões intelectuais patrocinadas por mulheres inteligentes e sofisticadas
nos salões pareciam indicar que o Iluminismo abraçaria a emancipação feminina,
rompendo com as antiqüíssimas tradições do patriarcalismo. De fato, poucos
iluministas, como Condorcet, se posicionaram a favor da emancipação das
mulheres. A maioria continuou considerando-as seres naturalmente inferiores aos
homens, que deveriam continuar afastadas da política, com menos direitos do que
os homens. No entanto, é claro que os ideais iluministas tendiam a abrir espaço
para a emergência de um movimento feminista que, na sua fase embrionária, teve
na inglesa Mary Wollstonecraft
(1759-1797) uma de suas pioneiras. Esposa de William Godwin e mãe de Mary
Shelley (autora do famoso livro Frankenstein),
Mary Wollstonecraft escreveu a Reivindicação
dos Direitos das Mulheres (1792), afirmando que as mulheres pareciam
inferiores aos homens por causa da falta de educação. Propôs a criação de uma
nova ordem social baseada na Razão em que homens e mulheres seriam tratados
como seres iguais racionais.
8. Iluminismo e revolução
Os
principais teóricos do Iluminismo, apesar de sua postura crítica, não pregavam
a derrubada dos governos ou a revolução popular. Mas os pressupostos
iluministas de liberdade, de questionamento dos dogmas e de crença na
capacidade de mudança geraram entre vários setores das sociedades, do final do
século XVIII em diante, uma mentalidade política que acreditava na
possibilidade e na legitimidade da transformação social – o progresso, visto como algo necessário,
possível e legítimo para o benefício da maioria. Com efeito, o Iluminismo possuía um potencial
revolucionário por criticar diversos aspectos do Antigo Regime e por abrir
espaço para a elaboração de propostas de criação de novos regimes que
assegurassem o progresso, a liberdade e a felicidade. Em uma carta à princesa
Dashkoff (1771), Diderot escreveu sobre esse potencial revolucionário do
Iluminismo:
Cada século tem o
espírito que o caracteriza. O espírito do nosso parece ser o da liberdade. O
primeiro ataque contra a superstição foi violento, desmedido. Uma vez que os
homens ousaram de qualquer maneira lançar-se ao assalto da muralha da religião,
esta muralha, a mais formidável que existe, assim como a mais respeitada, é
impossível deterem-se. Desde que voltaram os olhares ameaçadores contra a
majestade do Céu, não deixarão, um momento depois, de os dirigir contra a
soberania da Terra.2
Ainda assim, a hostilidade do Iluminismo em relação ao Antigo Regime
precisa ser vista com cautela, como escreveu T. Blanning sobre os iluministas
franceses:
É também difícil
encarar o Iluminismo como inequivocamente hostil ao Antigo Regime como um todo.
As características fundamentais deste último podem ser resumidas como
absolutista, católico, privilegiado, hierárquico, particularista (no sentido de
que as lealdades que ultrapassavam o âmbito da comunidade local eram antes
sentidas em relação a uma província ou ao rei do que em relação a uma abstração
como a nação) e agrário. Dentre estas, apenas a segunda pode ser considerada
como axiomaticamente rejeitada pelos filósofos. O catolicismo, enquanto
ideologia, era rejeitado por seu irracionalismo, e a Igreja Católica, enquanto
instituição, era rejeitada por sua riqueza, poder, corrupção e intolerância.3
Com efeito, na França, a crítica política dos principais iluministas
dirigiu-se mais contra os excessos ou distorções do Antigo Regime:
Entretanto, em
outros departamentos, a hostilidade se voltava menos para a essência do Antigo
Regime do que para os seus abusos. (...) As concepções políticas dos filósofos
não eram nem coesas nem revolucionárias. No entanto, compartilhavam um objeto
comum de aversão: o despotismo. Referiam-se com isto a uma forma degradada de
absolutismo, o governo da autoridade arbitrária, caprichosa e não limitada pela
lei. “Despotismo” era o termo predileto do período para designar o abuso, e
abarcava uma multidão de pecados, mas como William Doyle escreveu: “Acima de
tudo, despotismo era uma acusação lançada com uma freqüência cada vez maior
sobre o governo e seus agentes. Por volta dos anos 1780, era quase como se
governo e despotismo fossem sinônimos na opinião pública. E isso sugere que a
velha ordem havia perdido a confiança daqueles que nela viviam”.4
De fato, a
expectativa de transformação da realidade não foi criada pelo Iluminismo, mas
remonta às tradições cristãs da Idade Média, com a idéia de que um novo mundo
de justiça e de igualdade seria criado por Deus em benefício de uma comunidade
de eleitos (os fiéis escolhidos para a Salvação) – idéia chamada de milenarismo, uma forma de escatologia (doutrina das coisas que
devem acontecer no fim do mundo ou dos tempos). Essa tradição milenarista, que
representa uma forma de utopia (no
sentido de uma descrição imaginativa de uma sociedade ideal) estimulou diversas
revoltas populares nos séculos XIV-XVII, reprimidas pelas forças da ordem. Ela
também esteve presente nas duas grandes revoluções políticas vitoriosas do
século XVII, a Revolução Neerlandesa (1568-1648) e a Revolução Inglesa
(1648-1689). No caso de ambas, uma outra tradição medieval, a do constitucionalismo que limitava o poder
da monarquia, foi ideologicamente mais importante. A tradição
constitucionalista (parlamento representativo e subordinação do rei à lei dos
homens) foi preservada e aperfeiçoada pelo Iluminismo, que concordava com a
teoria do contrato social. Porém, ela não implicava necessariamente na idéia de
revolução, entendida como uma mudança radical para se criar algo novo. Ao
contrário, a tradição constitucionalista nos séculos XVII e XVIII era vista
mais como uma questão de restauração
de antigos direitos desrespeitados pela monarquia e não de criação de uma
estrutura constitucional nova. De uma forma geral, ela envolvia mais a
necessidade de reforma ou de ajuste no sistema político, sem alteração da
estrutura econômica e social.
Contudo, a
tradição cristã de mudança escatológica continuou existindo e foi se adaptando
às novas ideias desenvolvidas no século XVIII. De fato, o Iluminismo deu uma
outra dimensão a antiga expectativa de mudança escatológica ao introduzir nela
um conteúdo racionalista: a mudança não era mais uma questão dos desígnios de
Deus, mas dos desdobramentos da evolução da sociedade, seguindo um caminho que
poderia ser demonstrado pelo conhecimento racional, ou mais precisamente, por
uma ciência social e política. A política era uma criação da sociedade e
deveria representar, sobretudo, os interesses do seu conjunto (o contrato
social). Portanto, a felicidade da maioria era um objetivo racional e justo que
deveria ser assegurado por um sistema político que representasse as
necessidades da coletividade e não os interesses exclusivos de uma minoria
privilegiada. Sistemas políticos que reproduziam esses privilégios setoriais
impediam o progresso social e econômico e precisavam ser superados. Não era uma
questão de fé religiosa, mas de fé secular. Esse ideal de transformação da
sociedade formou uma cultura de inconformismo com a realidade social e
desenvolveu a idéia de ação política reformista ou revolucionária, que encontra
eco atualmente em expressões como “Um novo mundo é possível”.
9. Iluminismo, modernidade e as doutrinas
políticas modernas
Apesar de
ter sido formulado em uma época em que as sociedades ainda eram agrárias e
aristocráticas, o Iluminismo lançou os fundamentos da mentalidade da
modernidade – fundamentos culturais que foram rapidamente disseminados e
consolidados pela expansão da industrialização e da urbanização nos séculos XIX
e XX. Ideias como o racionalismo, a idealização do conhecimento científico como
o único caminho para se compreender a realidade, a liberdade como um direito
humano, regimes políticos seculares justificados pela teoria do contrato
social, a crença no dinamismo da sociedade e na capacidade dos homens
progredirem na direção de um sistema socialmente mais avançado, superando a
ignorância, o atraso e a injustiça. Nesse sentido, o Iluminismo lançou as bases
ideológicas das principais doutrinas políticas da modernidade, como o liberalismo, o socialismo e o nacionalismo.
O liberalismo
O
liberalismo baseia-se na crença na existência dos direitos naturais do
indivíduo (vida, propriedade, liberdade), no conceito de cidadania (direitos e
deveres políticos), na isonomia (igualdade diante da lei), no governo eleito e
constitucional (limitado pela lei), na tolerância ideológica e na liberdade
econômica, favorecendo o desenvolvimento do capitalismo e a meritocracia
(predomínio dos que tem mais mérito pelo seu esforço, dedicação e
inteligência). Na sua versão clássica
ou oligárquica, fundamentou-se
também no voto censitário (de acordo com a renda) e no ideal de Estado mínimo
(com pouca intervenção na economia, poucas atribuições, poucos gastos e poucos
impostos), enfatizando o laissez-faire.
Na sua versão radical ou democrática (democracia liberal ou
democracia moderna), destacou a soberania popular ou governo do povo, baseado
no sufrágio universal. A busca do compromisso entre os direitos individuais e
os interesses coletivos, em um regime com participação popular e liberdade de
oposição pacífica, preservando-se o capitalismo, é a essência da moderna
democracia liberal.
O socialismo
A doutrina
do socialismo baseia-se no ideal de criação de uma sociedade coletivista sem
propriedade privada dos meios de produção e sem classes sociais, beneficiando
os trabalhadores. Dependendo do contexto, o termo socialismo é utilizado como
sinônimo de comunismo. O socialismo
rejeita o capitalismo e o liberalismo e considera que a sociedade coletivista
(socialista ou comunista) que propõe construir é mais avançada e justa do que a
capitalista. Mas o socialismo dividiu-se em diversas correntes, com divergência
quanto ao caminho para se alcançar essa sociedade coletivista pós-capitalista e
quanto ao regime político que deveria preservá-la: Reforma gradual do
capitalismo (evolucionismo) ou revolução anticapitalista? Revolução liderada
por partidos de trabalhadores ou por sindicatos? Estado democrático com
liberdade política, ditadura revolucionária (com duração indefinida) ou
abolição imediata do governo? Socialismo nacional ou movimento internacional?
O nacionalismo
O
nacionalismo baseia-se no conceito de nação
– um povo que se vê como distinto de outros povos e, portanto, com direito de
constituir o seu próprio Estado nacional
independente (soberania nacional) em um determinado território. O nacionalismo
pode se manifestar como um movimento político de autodeterminação nacional: a constituição do Estado nacional por
meio da independência de um povo dominado por outro povo, ou por meio da
unificação de um povo dividido em Estados separados. Em alguns casos, o
povo/nação se identifica com uma única etnia
(comunidade unida pela língua, costumes, história e, em geral, religião),
negando às outras etnias que vivem no mesmo território o direito de pertencerem
ao Estado nacional, quer dizer, de possuirem cidadania. Em outros casos, o
povo/nação é composto por várias etnias que, mesmo com línguas e culturas
diferentes, compartilham uma mesma história e um mesmo Estado nacional. Também
no sentido político, o nacionalismo pode agir sob a forma do chauvinismo, isto é, como um
patriotismo exagerado e belicoso que mobiliza o povo contra outras nações. O nacionalismo econômico, por sua vez,
entende que a verdadeira soberania nacional pressupõe também independência
econômica: a nação deve possuir o máximo de auto-suficiência (autarquia) e não
depender do capital estrangeiro ou de importações. Assim, o Estado tem um papel
central no desenvolvimento econômico, interferindo no capitalismo. A produção
nacional deve ser protegida (protecionismo) e o livre-comércio rejeitado. Nos
casos extremos, os setores estratégicos da economia (energia, transporte,
comunicações) devem ser controlados pelo Estado (monopólios estatais).
NOTAS
- Perry (1999: 306)
- Albert
Soboul in Droz (1976: 130)
- Blanning (1991: 30-31)
- Blanning (1991: 37-38)
BIBLIOGRAFIA
BLANNING, Timothy C. W. Aristocratas
Versus Burgueses? A Revolução Francesa. São Paulo: Ática, 1991. Excelente
introdução revisionista das concepções tradicionais da Revolução Francesa.
DROZ, Jacques (org). História
Geral do Socialismo, Volume 1. Lisboa:
Livros Horizonte, 1976. Possivelmente o mais detalhado estudo sobre a história
do pensamento e dos movimentos socialistas de suas origens à década de 1970.
FALCON, Francisco José C. Iluminismo.
São Paulo: Ática, 1986 Pequeno estudo do pensamento iluminista, muito útil como
introdução ao assunto.
YOLTON,
John W. (org). The Blackwell Companion to the
Enlightenment. Cambridge:
Blackwell, 1995. Uma enciclopédia do Iluminismo, fundamental para os
interessados no tema.