quinta-feira, 2 de abril de 2015

65 - O Iluminismo


O Iluminismo

1. Significado

O Iluminismo, Ilustração ou Filosofia das Luzes foi um conjunto de ideias e atitudes que caracterizou a cultura das elites letradas da classe média, da burguesia e de parte da nobreza do Ocidente no século XVIII. Embora ele costume ser associado à cultura francesa – onde seus teóricos eram conhecidos genericamente como philosophes  o Iluminismo foi um fenômeno intelectual ocidental, presente em outros países da Europa e na América, sobretudo nas Treze Colônias britânicas. O Iluminismo foi a origem ideológica da modernidade, entendida, no seu aspecto cultural, como o pensamento secular baseado no conhecimento racional da realidade e na fé no progresso gerado pela ação humana.

2. Características gerais do Iluminismo

Como um pensamento, o Iluminismo foi complexo e diversificado, mas alguns pontos comuns podem ser apontados entre suas várias correntes:

O racionalismo

O racionalismo é a crença de que os fenômenos do universo, da natureza e da sociedade podem ser compreendidos racionalmente, isto é, por meio da Razão. Segundo os iluministas, a verdade deve ser descoberta por meio da inteligência, da crítica e da análise científica da realidade. As explicações sobre o mundo e as relações humanas inspiradas em princípios religiosos e metafísicos deviam ser rejeitadas pelo seu conteúdo irracional e supersticioso, que desviava a humanidade do conhecimento verdadeiro e da felicidade. Entre muitos iluministas, essa postura intelectual assumiu uma forma de racionalismo crítico: a aplicação da Razão às questões econômicas, sociais e políticas, que precisavam ser revistas visando à transformação da realidade. Os iluministas acreditavam que estavam levando a luz da Razão a uma humanidade encoberta pelas forças da ignorância, da superstição e do atraso.

A defesa da liberdade intelectual do indivíduo

Os iluministas destacaram-se pela ênfase na liberdade intelectual do indivíduo. Afirmavam que o conhecimento racional e a consciência individual, para serem adquiridos, precisavam da liberdade de pensamento, de opinião e de crítica. Isso implicou na condenação da censura, da superstição e dos dogmas da sociedade tradicional.

Crença no contrato social

Os iluministas rejeitavam qualquer autoridade que não pudesse ser justificada pela Razão. Repudiando a doutrina da origem divina do poder monárquico, os iluministas, em sua maioria, abraçaram a teoria do contrato social ou contratualismo, que afirma que o Estado foi criado pela sociedade e não por Deus. Mais precisamente, o contrato social acredita que o governo legítimo é resultado de um acordo voluntário entre as pessoas: os homens voluntariamente criaram o governo e lhe entregaram o poder porque precisam dele como garantidor da ordem. Portanto, não existe uma autoridade política “natural” ou “sagrada”. Ela é uma criação artificial e só existe porque tem o consentimento da sociedade. As noções mais remotas do contratualismo encontram-se na Grécia antiga com o conceito de polis e de governo eleito pelos cidadãos. Traços da teoria do contrato social também podem ser encontrados na Idade Média e na Renascença. Mas a época clássica da elaboração do contratualismo foi o período de 1650-1800, iniciado com a obra Leviatã (1651) de Thomas Hobbes, que produziu uma sofisticada teoria do contrato social em bases racionalistas. Embora o contratualismo de Hobbes tenha sido utilizado para justificar o absolutismo, sua teoria exerceu uma enorme influência sobre o Iluminismo, que acabou adaptando-a a noção de direto à liberdade individual.

O ideal de progresso e a busca da felicidade

A convicção de que, por meio do conhecimento racional, é possível transformar conscientemente e de forma sistemática a natureza, as instituições e a sociedade em benefício da maioria da população, criando um mundo melhor e mais avançado, com um nível sempre crescente de felicidade geral.

A postura diante de Deus e da religião

Por se tratar de um pensamento heterogêneo, ainda que unido pelo racionalismo, o Iluminismo não estabeleceu uma atitude única ou comum diante da existência de Deus e do papel da religião. De fato, a postura crítica dos iluministas tendia a levá-los a condenar os dogmas religiosos, o poder da Igreja e os privilégios do clero sobre a cultura de sua época, sobretudo nos países católicos, onde a intolerância e a censura eram maiores. Mas isso não significava necessariamente que o Iluminismo fosse, em sua essência, partidário do ateísmo (doutrina que nega a existência de Deus). Embora alguns iluministas tenham sido ateus, a maioria assumiu outras posições que buscavam conciliar o racionalismo, a crítica e a tradição religiosa cristã, sobretudo o seu humanitarismo. Como assinalou um historiador:

 A perspectiva dos philosophes foi permeada por um espírito humanitário, que em parte se devia, sem dúvida, à compaixão cristã. Esse espírito se manifestou nos ataques à tortura – freqüentemente utilizada em muitos países europeus como meio de se obterem confissões – às punições cruéis a que eram submetidos os criminosos, à escravidão e à guerra. O humanitarismo dos philosophes apoiava-se na convicção de que eram capazes de sentimentos bondosos uns em relação aos outros.1

De fato, muitos iluministas continuaram partidários do cristianismo, principalmente nos países protestantes. Na França e em outros países católicos, onde a presença da Igreja era considerada mais opressora, os iluministas afastaram-se da religião organizada e adotaram o deísmo (crença em Deus, porém rejeitando os dogmas, os rituais, o culto e o clero) e o agnosticismo (postura que considera inacessível ou incognoscível ao entendimento humano a compreensão da existência de Deus).

O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) considerava que a característica essencial do Iluminismo era a emancipação humana da superstição e da ignorância. No ensaio “Uma Resposta à Questão: O que é o Iluminismo?” (1784), Kant escreveu

O Iluminismo representa a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem para fazer uso do teu próprio entendimento! - esse é o lema do Iluminismo.  

A preguiça e a vileza são as causas pelas quais tão grande parte dos homens ainda permanecem de bom grado em estado de menoridade por toda a vida; e esta é a razão pela qual é tão fácil que outros se erijam como seus tutores. É tão cômodo ser tutelado! Se eu tiver um livro que pensa por mim, um diretor espiritual que tem consciência por mim, um médico que decide por mim sobre a dieta que me convém etc., não terei mais necessidade de me preocupar por mim mesmo.

3. Origens do Iluminismo

As origens do Iluminismo remontam ao Renascimento Cultural dos séculos XIV-XVI, com o humanismo e o resgate das tradições antropocêntricas e racionalistas da Antiguidade Clássica, mas a sua antecessora imediata foi a Revolução Científica dos séculos XVI-XVII, responsável pelo desenvolvimento do método experimental e do espírito crítico, resultando no aperfeiçoamento da matemática e no nascimento das ciências naturais, sobretudo a astronomia e a física (obras de Nicolau Copérnico, 1473-1543; Galileu Galilei, 1554-1642; Johannes Kepler, 1571-1630; Blaise Pascal, 1623-1662; Robert Boyle, 1627-1691, e Isaac Newton, 1642-1727). Paralelamente a Revolução Científica, e por ela influenciada, são lançados os fundamentos da filosofia moderna (pensamento de Francis Bacon, 1561-1626; René Descartes, 1596-1650; Baruch Spinoza, 1632-1677). Como na Renascença, os iluministas inspiraram-se na antiga cultura clássica greco-romana, mas adaptaram sua visão da Antiguidade ao racionalismo e às descobertas científicas do século XVII. A história e a política da Grécia e de Roma exerceram um enorme fascínio nos iluministas, constituindo objeto de estudo ou de referência para diversos pensadores, como Montesquieu e Rousseau. O Iluminismo estava, assim, inserido em um contexto cultural mais amplo das elites européias, fortemente marcado pelo avanço do racionalismo combinado com a admiração pelos gregos e romanos. Esse período da história do Ocidente, entre 1650 e 1800, englobando a Revolução Científica e o Iluminismo, costuma ser chamado de Era da Razão.

4. Destaques do Iluminismo

O Iluminismo abrangeu todas as áreas do conhecimento racional e das artes do Ocidente no século XVIII. É possível, assim, reunir os pensadores e cientistas iluministas por áreas de atuação, embora muitos tenham atuado simultaneamente em diversos ramos das ciências e da cultura artística. Na filosofia, por exemplo, os nomes mais destacados foram de John Locke (1632-1704), Gottfried Liebniz (1646-1716), David Hume (1711-1776), Claude Adrien Helvétius (1715-1771) e Immanuel Kant (1724-1804). Nas ciências naturais, destacaram-se Isaac Newton (1642-1727), Conde de Buffon (1707-1788), Joseph Priestley (1733-1804), Charles-Augustinde Coulomb (1736-1804), Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829), Antoine Lavoisier (1743-1794) e Pierre Simon Laplace (1749-1827). Na História, o grande nome foi o de Edward Gibbon (1737-1794), autor da monumental A História do Declínio e Queda do Império Romano (1776-1788). Do ponto de vista do pensamento político, social e econômico os principais pensadores iluministas podem ser agrupados em um grupo de linha "liberal" e em grupo de linha "socialista".

4.1 Os iluministas "liberais"

Foram pensadores iluministas que contribuíram para o desenvolvimento do liberalismo ou doutrina liberal, que enfatiza os direitos naturais do indivíduo (vida, propriedade, liberdade), a isonomia (direitos iguais), o governo representativo constitucional (limitado pela lei), a tolerância ideológica (respeitar as ideias do outro) e a liberdade econômica (livre iniciativa, livre comércio, não intervenção governamental na economia). Esses iluministas não concordavam necessariamente com todas essas ideias em conjunto. Suas obras, porém, foram determinantes para a elaboração do pensamento liberal, concluído, em suas linhas gerais, no início do século XIX.

John Locke (1632-1704)

Britânico, defensor da Revolução Gloriosa (1688-1689) e da criação da monarquia constitucional, Locke costuma ser considerado o precursor do Iluminismo e “pai” do liberalismo político. Representante do empirismo britânico, no Ensaio Sobre o Entendimento Humano (1690), condena a doutrina das ideias inatas de Descartes, afirma que a mente humana (a “alma”) é uma tábula rasa (tábua sem inscrições, quer dizer, sem idéias inerentes) e que o conhecimento vem da experiência e da observação. Nos Dois Tratados Sobre o Governo (1689), afirma que as pessoas são em sua essência boas e que todas nascem com o direito natural à vida, liberdade e propriedade. O Estado foi criado pelos homens para proteger esses direitos e o poder de governar deriva do consentimento dos governados, com sua autoridade limitada pela lei. Se o governo vira uma tirania e oprime os indivíduos, ele age ilegalmente; nesse caso, o povo tem o direito de se rebelar e constituir um novo governo, compatível com os direitos naturais. Locke foi um dos primeiros teóricos a propor a divisão de poderes em três tipos: o “poder legislativo” (o principal, responsável pela elaboração das leis para o bem da sociedade), o “poder executivo” (executor das leis) e o “poder federativo” (diplomático, tratando das relações com outros Estados visando a segurança da sociedade).

Pierre Bayle (1647-1706)

Calvinista francês, Bayle foi um renomado professor de filosofia que, para escapar da censura na França, refugiou-se na Holanda (1682), onde escreveu uma série de livros. A sua obra mais importante foi o Dicionário Histórico e Crítico (1697) que antecipou a famosa Enciclopédia de Diderot. Dono de uma impressionante erudição, Bayle destacou-se pela defesa da tolerância e da liberdade de crítica. Suas idéias exerceram uma enorme influência sobre o Iluminismo. A seu respeito, Voltaire comentou: “O maior mestre que já escreveu sobre a arte de raciocínio, Bayle, grande e sábio, todos os sistemas derrubou”.

Montesquieu (1689-1755)

O francês Charles Louis de Secondat ou Barão de Montesquieu ficou famoso pela obra O Espírito das Leis (1748), com a defesa da monarquia constitucional de modelo britânico e a teoria dos “pesos e contrapesos” – a divisão de poderes (executivo, legislativo e judiciário) para impedir o absolutismo, aperfeiçoando as idéias de Locke. Um dos livros políticos mais importantes de todos os tempos, O Espírito das Leis exerceu uma grande influência na criação dos regimes políticos da Idade Contemporânea, começando pela república dos EUA, que incorporou as idéias de Montesquieu sobre a divisão de poderes na sua constituição. Montesquieu propôs também a reforma dos códigos de lei para regular os crimes, com punições humanas, destacando-se por ter sido um dos primeiros a defender a abolição da tortura.

Voltaire (1694-1778)

Escritor, propagandista e polemista francês, François Marie Arouet de Voltaire foi o mais famoso intelectual iluminista, embora não tenha desenvolvido uma teoria ou um estudo político sistemático. Voltaire destacou-se na defesa da liberdade de expressão e na condenação de todas as formas de opressão. É dele a famosa frase: “Posso não concordar com uma palavra do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”. Embora fosse um grande admirador das liberdades e do regime parlamentar da Grã-Bretanha (o “espelho da liberdade”), Voltaire não considerava que a França devesse adotar o sistema político britânico. Para ele, uma monarquia centralizada e forte poderia ser boa, justa e progressista – idéia que acabou associando-o ao despotismo esclarecido. De fato, Voltaire tentou orientar o rei absolutista Frederico II da Prússia na adoção de reformas modernizadoras, mas fracassou. De toda forma, ele achava que as verdadeiras fontes de opressão, de intolerância e de atraso na França eram a nobreza, a Igreja e as cortes soberanas de justiça ou parlements (que eram distintas do parlamento legislativo britânico). Essas “relíquias medievais”, dizia, impediam o estabelecimento de um governo monárquico eficiente capaz de modernizar o país. Crítico feroz da aristocracia e da Igreja, Voltaire condenou os abusos dos sacerdotes, com forte espírito anticlerical. Voltaire foi o mais famoso deísta do Iluminismo.

Rousseau (1712-1778)

De origem suíça e formação calvinista (converteu-se depois ao catolicismo), Jean-Jacques Rousseau é considerado o "pai da democracia moderna", destacando-se pela defesa da soberania popular. Suas obras mais famosas foram o Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens (1755) e O Contrato Social (1762). Mas ele considerava Emílio, ou da Educação (1762), que aborda a relação entre o indivíduo e a sociedade, o seu livro mais importante. Rousseau acreditava que o homem é bom por natureza, mas corrompido pela sociedade. No entanto, por meio de uma educação eficiente, o “homem natural” poderia conviver com a sociedade corrupta. No Discurso Sobre a Desigualdade, reconheceu que a propriedade privada era a origem das desigualdades sociais: “O primeiro que, tendo posto uma cerca no terreno, se lembrou de dizer: ‘Isto é meu’, e encontrou pessoas bastante simples para o acreditarem, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil.” A propriedade privada não era um direito natural, dizia, mas um fato histórico, resultado do desenvolvimento da sociedade. Propôs corrigir a injustiça social, mas não abolir a propriedade, que considerava um direito concedido pela lei civil. O ideal eram reformas que alcançassem um ponto de equilíbrio na sociedade (“Querem dar consistência ao Estado? Aproximem os graus extremos tanto quanto for possível: não suportem gente opulenta nem esfarrapada”). Rousseau inicia O Contrato Social com a célebre frase “O homem nasce livre e por toda parte se encontra acorrentado”. Admirador da antiga polis grega e do espírito comunitário dos seus cidadãos, Rousseau propunha a criação de um regime democrático, governado de acordo com a “vontade geral” do povo, em que o indivíduo renunciaria aos seus interesses particulares em benefício de toda a comunidade. Essa vontade geral seria baseada no bom senso e na razão, e pressupunha a existência de cidadãos conscientes, justos e esclarecidos, dotados do espírito público, e da igualdade de direitos. Entretanto, as idéias políticas de Rousseau foram alvo de uma dupla interpretação: enquanto a soberania popular pode ser entendida como uma defesa da democracia, ela também pode implicar em um regime coletivista de linha totalitária, onde um Estado controlado por supostos representantes dos interesses ou da vontade geral sufoca as liberdades individuais.

Raynal (1713-1796)

O francês Guillaume Thomas François Raynal ou Abade Raynal, um ex-padre, foi autor de um importante livro: História Filosófica e Política dos Estabelecimentos e do Comércio dos Europeus nas Duas Índias (1770), em quatro volumes, que contou com a colaboração, entre outros, de Diderot. A obra foi um enorme sucesso e ficou famosa pelas suas críticas ao absolutismo, ao clero e, principalmente, pelo seu conteúdo anticolonialista e anti-escravista, ficando conhecida como a “Bíblia do anticolonialismo iluminista”. A História das Duas Índias foi proibida na França, Espanha e Portugal e entrou no Índex de livros proibidos pela Igreja. O livro de Raynal circulou clandestinamente nas colônias ibéricas na América. Nas investigações sobre a Inconfidência Mineira (1789), as autoridades portuguesas descobriram exemplares da obra com os inconfidentes. Conta-se que Napoleão Bonaparte afirmou ser um “discípulo zeloso de Raynal”.

A Enciclopédia (1751-1780)

Obra coletiva, reunindo e sintetizando o pensamento iluminista em 35 volumes, com mais de 71.800 artigos, a Enciclopédia foi organizada por Denis Diderot (1713-1784) e Jean Le Rond D’Alembert (1717-1783), e contou com a colaboração de cerca de 150 autores, entre eles Montesquieu, Voltaire, Rousseau, Quesnay e o Barão de Holbach. A obra inspirou-se na Cyclopedia ou Dicionário Universal das Artes e das Ciências (1704), do inglês Ephraim Chambers (1680-1740). Apesar dos problemas com a censura francesa e de ter sido condenada pelo papa Clemente XIII, a Enciclopédia expôs e difundiu o Iluminismo e levou seus autores e colaboradores a ficarem conhecidos como “enciclopedistas”.

A fisiocracia

Os fisiocratas lançaram as bases teóricas da doutrina econômica liberal (defesa da propriedade privada, da liberdade econômica, da redução das taxas), junto com a famosa máxima Laissez-faire, laissez-passer (“Deixai fazer, deixai passar”). Seu principal expoente foi François Quesnay (1694-1774), autor do Tableau Economique (1758). A escola fisiocrata considerava que a principal fonte de riqueza de um país era a terra (Natureza), mais precisamente a atividade agrícola, e viam a indústria e o comércio como  atividades  secundárias  a  ela  subordinadas,  que  apenas  transformavam  e  distribuíam  os  produtos  da  agricultura

Adam Smith (1723-1790)

 Economista escocês, Adam Smith foi o mais importante pioneiro da ciência econômica (a “economia política”) na visão liberal clássica. Sua obra mais célebre foi “Uma Investigação Sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações” (1776). Smith rejeitou o intervencionismo estatal na economia decorrente do mercantilismo, um conjunto de teorias e práticas econômicas típicas de sua época. O mercantilismo já tinha sido criticado por economistas “protoliberais” predecessores de Smith, como o inglês William Petty (1623-1687) e, principalmente, os fisiocratas franceses. Smith reconheceu o mérito dos fisiocratas na defesa do individualismo e da liberdade econômica, bem como na elaboração de uma teoria que explicava a criação da riqueza a partir da produção e não apenas da circulação (comércio). No entanto, ele discordou da tese de que a riqueza de um país estaria necessariamente na agricultura. Para Smith, essa riqueza dependeria do trabalho e da sua divisão ou especialização, isto é, da capacidade e organização produtiva de um país. A divisão do trabalho (divisão de tarefas e especialização das atividades) é responsável pelo crescimento qualitativo da produção, mas isso depende também de um contexto de liberdade econômica em escala nacional e global. O comércio internacional não pode sofrer restrições (como, por exemplo, de monopólios coloniais mercantilistas ou taxações protecionistas exageradas), sob o risco de afetar o fluxo de mercadorias entre os países e limitar o progresso geral. Uma economia eficiente seria aquela que combinasse a divisão de trabalho, a disponibilidade de capitais e um mercado amplo com a garantia de liberdade para os homens conduzirem os seus próprios negócios. Para justificar o ideal do laissez-faire, Smith elaborou o conceito da “mão invisível” que naturalmente coordenaria o mercado: movidos pelos seus interesses pessoais, os indivíduos são conduzidos por uma mão invisível a obter resultados que não estavam originalmente em seus planos, mas que acabam beneficiando a sociedade como um todo. Se os consumidores tiverem liberdade para escolher e comprar e se os produtores possuírem liberdade para produzir e vender, a produção e os preços serão estabelecidos de forma natural em um mercado autorregulado favorecendo a sociedade. 

D’Holbach (1723-1789)

Alemão que passou a maior parte de sua vida na França, Paul Heinrich Dietrich ou Barão d’Holbach, foi um famoso ateu. Seu livro mais destacado foi O Sistema da Natureza (1770), onde ele descreve o universo sob a ótica do materialismo. Holbach negava a existência de Deus (afirmava que a crença nele era decorrência do medo humano), da alma e do livre-arbítrio. Crítico dos abusos do poder dos monarcas, ele foi contra a ação revolucionária, por temer a as massas iletradas, e defendeu reformas dirigidas pela elite culta.

Marquês de Condorcet (1743-1794)

O pensamento do francês Jean-Antoine-Nicolas Caritat ou Condorcet, encarnou como poucos, o espírito da Filosofia das Luzes. Matemático (desenvolveu a teoria das probabilidades), filósofo e cientista político, Condorcet foi um dos grandes defensores da economia de mercado, do constitucionalismo, da educação pública e livre, da abolição da escravidão e da igualdade de direitos para as mulheres e para todos os povos, independente de sua raça.

4.2 Os iluministas "socialistas"

Os iluministas "liberais" são os mais famosos pensadores do Iluminismo, o que levou muitos a identificar Iluminismo com liberalismo. Contudo, muitos iluministas foram críticos da propriedade privada e da desigualdade social, defendendo uma nova sociedade igualitária e coletivista de feições comunistas ou socialistas, antecipando as ideias do comunismo ou socialismo do século XIX. Em geral, esses iluministas eram também ateus (não acreditavam na existência de Deus), uma postura materialista que também caracterizou a maioria das doutrinas comunistas ou socialistas posteriores.

Jean Meslier (1664-1729)

Padre francês, após sua morte foi descoberta uma obra oculta de sua autoria, Memórias dos Pensamentos e Sentimentos de Jean Meslier, mais conhecida como Testamento, que revelou ser Meslier um ateu e comunista. Uma versão adulterada por Voltaire, em que o ateísmo de Meslier foi substituído pelo deísmo, foi a primeira que circulou (1761). Apenas no século XIX a versão original foi integralmente publicada. Em uma visão dualista, Meslier opunha a miséria dos camponeses franceses à riqueza dos ricos e poderosos, uma desigualdade que considerava injustificável e contrária à lei natural: “Porque de modo algum se apóia no mérito de uns, nem no pouco merecimento de outros. Todos os homens são iguais pela natureza, todos têm igualmente o direito de viver e de caminhar sobre a terra, de nela gozarem igualmente a sua liberdade natural, e terem parte nos bens terrenos”. Meslier denunciou a nobreza e o clero como parasitas sociais e condenou a propriedade privada (“um abuso”), propondo em seu lugar a comunidade de bens (“Todos deveriam possuí-las em comum e todos igualmente as deveriam usufruir em comum”), onde o trabalho seria obrigatório (“Todos à tarefa”). Caberia ao povo lutar pela criação da nova sociedade: “Uni-vos, pois, povos, se sois sábios. Uni-vos todos se tendes ânimo para vos libertar de todas as vossas comuns misérias”. Talvez a sua frase mais famosa foi a do homem que “queria que todos os grandes homens e toda a nobreza do mundo pudesse ser enforcada e estrangulada com as tripas dos sacerdotes” (Diderot adaptou a frase para uma versão mais conhecida: “E com as tripas do último sacerdote vamos estrangular o pescoço do último rei.”).

Mably (1709-1785)

Gabriel Bonnot de Mably, francês, irmão de Condillac, foi um dos escritores mais populares do século XVIII, mas mergulhou na obscuridade no século XX. Entre suas obras destaca-se a Conversações com Phocion (1763), onde afirmou que as origens de todos os males da humanidade estava nas paixões ou desejos, que estabeleceram o direito individual em detrimento do interesse público. Mably foi outro iluminista que condenou a propriedade privada, contrária, segundo ele, a ordem natural. Foi também um crítico do comércio (“uma espécie de monstro que por suas próprias mãos se destrói”). Mas seus trabalhos mais influentes foram publicados postumamente: uma versão ampliada da História da França (o original é de 1765) e o Dos Direitos e Deveres do Cidadão (escrito em 1758). Ambos tiveram um grande impacto no início da Revolução Francesa por defenderem o estabelecimento de uma assembléia legislativa soberana.

Morelly (1717-?)

Misterioso pensador francês, do qual pouco se sabe, Étienne-Gabriel Morelly foi junto com Meslier representante do grupo comunista utópico do Iluminismo. Sua obra mais célebre foi o Código da Natureza (1755), onde condena o desejo humano de ter (“a base de todos os nossos vícios”) e propõe a criação de um novo regime sem propriedade privada e com a sociedade dividida em “classes de trabalho” em um sistema racional e equilibrado de distribuição, beneficiado pelo progresso da ciência.

William Godwin (1756-1839)

O inglês Godwin foi um dos precursores do anarquismo. Em meio a Revolução Francesa, escreveu a sua principal obra política, Inquérito Acerca da Justiça Política e sua Influência na Virtude e Felicidade Geral (1793), onde afirmou que naturalmente a sociedade iria evoluir por causa da racionalidade humana. Condenou o Estado, mas não defendeu uma revolução. No Inquérito, expôs também sua visão sobre o funcionamento de uma sociedade anarquista.

5. O Despotismo Esclarecido

 “Despotismo esclarecido” era uma monarquia absolutista que aceitava os princípios racionais do Iluminismo para modernizar o Estado, permitindo uma maior racionalização administrativa. Conhecido também como absolutismo “ilustrado”, “iluminado” ou “benevolente”, o despotismo esclarecido tinha objetivo de fortalecer a própria monarquia com a codificação de leis e o estabelecimento de forças militares mais capacitadas e um sistema tributário mais eficiente. Em alguns casos, medidas de tolerância religiosa foram adotadas, principalmente na Europa Oriental (liberdade para os protestantes na Rússia e Áustria e para os católicos na Prússia). Os principais exemplos de despotismo esclarecido foram o reinado da czarina Catarina II na Rússia (1762-1796), do rei Frederico II na Prússia (1740-1786), do imperador José II na Áustria (1780-1790), do rei Carlos III na Espanha (1759-1788) e o governo do primeiro-ministro Marquês de Pombal (1750-1777), do rei José I de Portugal.

6. A difusão do Iluminismo

O termo iluminista pode ser utilizado em dois sentidos no contexto do século XVIII. Em primeiro lugar, ele se refere aos teóricos do Iluminismo, quer dizer, aos autores de obras que desenvolveram e difundiram o pensamento iluminista, como os philosophes Montesquieu, Voltaire ou Rousseau. Em segundo lugar, iluministas também são as pessoas comuns de diversos estratos sociais que adotaram as idéias do Iluminismo, ou seja, que foram influenciadas por elas em suas atitudes diante do mundo do século XVIII (por exemplo, em sua visão da sociedade, da política, do conhecimento e da religião). Na maioria dos casos, essas pessoas comuns eram indivíduos letrados e com instrução, que tinham condições de ler e discutir a Filosofia das Luzes. Além da própria nobreza e do clero, as pessoas cultas pertenciam, em geral, aos grupos urbanos, como a burguesia e a classe média de advogados, médicos, engenheiros, arquitetos, professores e pequenos lojistas, entre outros. Esses setores urbanos costumam ser vistos como os principais seguidores do pensamento iluminista, razão de muitos estudiosos considerarem que o Iluminismo foi uma “mentalidade da burguesia em ascensão”, marcada pela ênfase na liberdade e no individualismo. Na verdade, o Iluminismo encontrou seguidores em todas as camadas sociais, mas ficou mais concentrado junto às elites políticas e econômicas e à classe média das cidades.

Nos países onde a liberdade de expressão já era considerável para os padrões da época, como na Grã-Bretanha, Treze Colônias e Países Baixos, a mentalidade iluminista foi propagada mais facilmente pela livre circulação de livros e jornais. Nos países absolutistas, sobretudo nos católicos, a censura era mais forte e muitas obras circularam clandestinamente. Em todos os países, a maçonaria ou franco-maçonaria (sociedade semi-secreta voltada para a prática de fraternidade e da filantropia entre seus membros) foi um importante instrumento de difusão do Iluminismo. Na França, dois focos de divulgação e discussão da Filosofia das Luzes se destacaram: os salões literários e as academias. Os salões literários surgiram no século XVII como locais de reuniões das elites eruditas em residências ou hotéis, geralmente da aristocracia. Em muitos casos eram mulheres da alta sociedade que patrocinavam esses encontros, como Madame de Deffand (Marie Anne de Vichy-Chamrond, 1697-1780), Madame Geoffrin (Marie Thérèse Rodet Geoffrin, 1699-1777), Madame Helvétius (Anne-Catherine de Ligniville, 1722-1800) e Madame Necker (Suzanne Curchod, 1737-1794), mãe de outra famosa organizadora de salões, a escritora Madame de Staël (Anne Louise Germaine de Staël-Holstein, 1766-1817). Os salões eram freqüentados pelos principais teóricos do Iluminismo, possibilitando que debatessem suas idéias diretamente com membros da nobreza e da burguesia. Já as academias eram instituições de pesquisa e de conhecimento que davam aos seus associados um alto prestígio. Duas modalidades de academias emergiram na França no século XVII e floresceram no século XVIII: as academias de artes e as academias de ciências, ambas patrocinadas pelo Estado. Na verdade, a Grã-Bretanha foi pioneira na construção da moderna academia de ciências, com a fundação da Royal Society de Londres (1660), influenciando sua similar francesa. Em 1666, Luis XIV fundou a Academia de Ciências de Paris e patrocinou a criação de uma academia de pintura e escultura (1699) e uma instituição de arquitetura (1671). Especialmente no caso das academias de ciências, o desenvolvimento e difusão do conhecimento científico e dos valores do racionalismo ganharam um enorme impulso, contribuindo para a formação de uma mentalidade crítica que buscava rever diversos dogmas ou certezas da época.

Apesar de seu caráter mais elitista, compartilhado pela aristocracia progressista, pela burguesia e pela classe média, o Iluminismo gerou também uma versão vulgar e popular que enfatizava a crítica aos privilégios e hábitos da nobreza e da monarquia, muitas vezes destacando as (supostas) depravações sexuais da aristocracia. Difundido por meio de panfletos entre os setores mais pobres e marginalizados das cidades, principalmente na França, essa modalidade de Iluminismo contribuiu para a formação de um clima politicamente hostil ao Antigo Regime e favorável à transformação da sociedade.

Contudo, como em todas as ideologias, as pessoas comuns partidárias do Iluminismo raramente moldaram sua visão de mundo seguindo exclusivamente as idéias iluministas. Elas podem ser chamadas de iluministas por adotarem as proposições básicas do Iluminismo, como o conhecimento racionalista, a defesa da liberdade intelectual e a fé no progresso. Na prática, elas adaptaram essas idéias a outras, o que explica porque antigas tradições continuaram sendo amplamente aceitas, como a religião. Essa conciliação (mais corretamente a tentativa de conciliação) entre o novo e o antigo ou tradicional também pode ser encontrada entre os philosophes do Século das Luzes, refletida em algumas contradições e limites intelectuais de suas obras, como na questão do racionalismo crítico diante da religião ou da monarquia.

7. Iluminismo e as mulheres

O Iluminismo foi ambíguo em relação às mulheres. A defesa da liberdade e da igualdade, e as discussões intelectuais patrocinadas por mulheres inteligentes e sofisticadas nos salões pareciam indicar que o Iluminismo abraçaria a emancipação feminina, rompendo com as antiqüíssimas tradições do patriarcalismo. De fato, poucos iluministas, como Condorcet, se posicionaram a favor da emancipação das mulheres. A maioria continuou considerando-as seres naturalmente inferiores aos homens, que deveriam continuar afastadas da política, com menos direitos do que os homens. No entanto, é claro que os ideais iluministas tendiam a abrir espaço para a emergência de um movimento feminista que, na sua fase embrionária, teve na inglesa Mary Wollstonecraft (1759-1797) uma de suas pioneiras. Esposa de William Godwin e mãe de Mary Shelley (autora do famoso livro Frankenstein), Mary Wollstonecraft escreveu a Reivindicação dos Direitos das Mulheres (1792), afirmando que as mulheres pareciam inferiores aos homens por causa da falta de educação. Propôs a criação de uma nova ordem social baseada na Razão em que homens e mulheres seriam tratados como seres iguais racionais.

8. Iluminismo e revolução

Os principais teóricos do Iluminismo, apesar de sua postura crítica, não pregavam a derrubada dos governos ou a revolução popular. Mas os pressupostos iluministas de liberdade, de questionamento dos dogmas e de crença na capacidade de mudança geraram entre vários setores das sociedades, do final do século XVIII em diante, uma mentalidade política que acreditava na possibilidade e na legitimidade da transformação social – o progresso, visto como algo necessário, possível e legítimo para o benefício da maioria. Com efeito, o Iluminismo possuía um potencial revolucionário por criticar diversos aspectos do Antigo Regime e por abrir espaço para a elaboração de propostas de criação de novos regimes que assegurassem o progresso, a liberdade e a felicidade. Em uma carta à princesa Dashkoff (1771), Diderot escreveu sobre esse potencial revolucionário do Iluminismo:

Cada século tem o espírito que o caracteriza. O espírito do nosso parece ser o da liberdade. O primeiro ataque contra a superstição foi violento, desmedido. Uma vez que os homens ousaram de qualquer maneira lançar-se ao assalto da muralha da religião, esta muralha, a mais formidável que existe, assim como a mais respeitada, é impossível deterem-se. Desde que voltaram os olhares ameaçadores contra a majestade do Céu, não deixarão, um momento depois, de os dirigir contra a soberania da Terra.2 

Ainda assim, a hostilidade do Iluminismo em relação ao Antigo Regime precisa ser vista com cautela, como escreveu T. Blanning sobre os iluministas franceses:

É também difícil encarar o Iluminismo como inequivocamente hostil ao Antigo Regime como um todo. As características fundamentais deste último podem ser resumidas como absolutista, católico, privilegiado, hierárquico, particularista (no sentido de que as lealdades que ultrapassavam o âmbito da comunidade local eram antes sentidas em relação a uma província ou ao rei do que em relação a uma abstração como a nação) e agrário. Dentre estas, apenas a segunda pode ser considerada como axiomaticamente rejeitada pelos filósofos. O catolicismo, enquanto ideologia, era rejeitado por seu irracionalismo, e a Igreja Católica, enquanto instituição, era rejeitada por sua riqueza, poder, corrupção e intolerância.3

Com efeito, na França, a crítica política dos principais iluministas dirigiu-se mais contra os excessos ou distorções do Antigo Regime:

Entretanto, em outros departamentos, a hostilidade se voltava menos para a essência do Antigo Regime do que para os seus abusos. (...) As concepções políticas dos filósofos não eram nem coesas nem revolucionárias. No entanto, compartilhavam um objeto comum de aversão: o despotismo. Referiam-se com isto a uma forma degradada de absolutismo, o governo da autoridade arbitrária, caprichosa e não limitada pela lei. “Despotismo” era o termo predileto do período para designar o abuso, e abarcava uma multidão de pecados, mas como William Doyle escreveu: “Acima de tudo, despotismo era uma acusação lançada com uma freqüência cada vez maior sobre o governo e seus agentes. Por volta dos anos 1780, era quase como se governo e despotismo fossem sinônimos na opinião pública. E isso sugere que a velha ordem havia perdido a confiança daqueles que nela viviam”.4 

De fato, a expectativa de transformação da realidade não foi criada pelo Iluminismo, mas remonta às tradições cristãs da Idade Média, com a idéia de que um novo mundo de justiça e de igualdade seria criado por Deus em benefício de uma comunidade de eleitos (os fiéis escolhidos para a Salvação) – idéia chamada de milenarismo, uma forma de escatologia (doutrina das coisas que devem acontecer no fim do mundo ou dos tempos). Essa tradição milenarista, que representa uma forma de utopia (no sentido de uma descrição imaginativa de uma sociedade ideal) estimulou diversas revoltas populares nos séculos XIV-XVII, reprimidas pelas forças da ordem. Ela também esteve presente nas duas grandes revoluções políticas vitoriosas do século XVII, a Revolução Neerlandesa (1568-1648) e a Revolução Inglesa (1648-1689). No caso de ambas, uma outra tradição medieval, a do constitucionalismo que limitava o poder da monarquia, foi ideologicamente mais importante. A tradição constitucionalista (parlamento representativo e subordinação do rei à lei dos homens) foi preservada e aperfeiçoada pelo Iluminismo, que concordava com a teoria do contrato social. Porém, ela não implicava necessariamente na idéia de revolução, entendida como uma mudança radical para se criar algo novo. Ao contrário, a tradição constitucionalista nos séculos XVII e XVIII era vista mais como uma questão de restauração de antigos direitos desrespeitados pela monarquia e não de criação de uma estrutura constitucional nova. De uma forma geral, ela envolvia mais a necessidade de reforma ou de ajuste no sistema político, sem alteração da estrutura econômica e social.

Contudo, a tradição cristã de mudança escatológica continuou existindo e foi se adaptando às novas ideias desenvolvidas no século XVIII. De fato, o Iluminismo deu uma outra dimensão a antiga expectativa de mudança escatológica ao introduzir nela um conteúdo racionalista: a mudança não era mais uma questão dos desígnios de Deus, mas dos desdobramentos da evolução da sociedade, seguindo um caminho que poderia ser demonstrado pelo conhecimento racional, ou mais precisamente, por uma ciência social e política. A política era uma criação da sociedade e deveria representar, sobretudo, os interesses do seu conjunto (o contrato social). Portanto, a felicidade da maioria era um objetivo racional e justo que deveria ser assegurado por um sistema político que representasse as necessidades da coletividade e não os interesses exclusivos de uma minoria privilegiada. Sistemas políticos que reproduziam esses privilégios setoriais impediam o progresso social e econômico e precisavam ser superados. Não era uma questão de fé religiosa, mas de fé secular. Esse ideal de transformação da sociedade formou uma cultura de inconformismo com a realidade social e desenvolveu a idéia de ação política reformista ou revolucionária, que encontra eco atualmente em expressões como “Um novo mundo é possível”.

9. Iluminismo, modernidade e as doutrinas políticas modernas

Apesar de ter sido formulado em uma época em que as sociedades ainda eram agrárias e aristocráticas, o Iluminismo lançou os fundamentos da mentalidade da modernidade – fundamentos culturais que foram rapidamente disseminados e consolidados pela expansão da industrialização e da urbanização nos séculos XIX e XX. Ideias como o racionalismo, a idealização do conhecimento científico como o único caminho para se compreender a realidade, a liberdade como um direito humano, regimes políticos seculares justificados pela teoria do contrato social, a crença no dinamismo da sociedade e na capacidade dos homens progredirem na direção de um sistema socialmente mais avançado, superando a ignorância, o atraso e a injustiça. Nesse sentido, o Iluminismo lançou as bases ideológicas das principais doutrinas políticas da modernidade, como o liberalismo, o socialismo e o nacionalismo.

O liberalismo

O liberalismo baseia-se na crença na existência dos direitos naturais do indivíduo (vida, propriedade, liberdade), no conceito de cidadania (direitos e deveres políticos), na isonomia (igualdade diante da lei), no governo eleito e constitucional (limitado pela lei), na tolerância ideológica e na liberdade econômica, favorecendo o desenvolvimento do capitalismo e a meritocracia (predomínio dos que tem mais mérito pelo seu esforço, dedicação e inteligência). Na sua versão clássica ou oligárquica, fundamentou-se também no voto censitário (de acordo com a renda) e no ideal de Estado mínimo (com pouca intervenção na economia, poucas atribuições, poucos gastos e poucos impostos), enfatizando o laissez-faire. Na sua versão radical ou democrática (democracia liberal ou democracia moderna), destacou a soberania popular ou governo do povo, baseado no sufrágio universal. A busca do compromisso entre os direitos individuais e os interesses coletivos, em um regime com participação popular e liberdade de oposição pacífica, preservando-se o capitalismo, é a essência da moderna democracia liberal.

O socialismo

A doutrina do socialismo baseia-se no ideal de criação de uma sociedade coletivista sem propriedade privada dos meios de produção e sem classes sociais, beneficiando os trabalhadores. Dependendo do contexto, o termo socialismo é utilizado como sinônimo de comunismo. O socialismo rejeita o capitalismo e o liberalismo e considera que a sociedade coletivista (socialista ou comunista) que propõe construir é mais avançada e justa do que a capitalista. Mas o socialismo dividiu-se em diversas correntes, com divergência quanto ao caminho para se alcançar essa sociedade coletivista pós-capitalista e quanto ao regime político que deveria preservá-la: Reforma gradual do capitalismo (evolucionismo) ou revolução anticapitalista? Revolução liderada por partidos de trabalhadores ou por sindicatos? Estado democrático com liberdade política, ditadura revolucionária (com duração indefinida) ou abolição imediata do governo? Socialismo nacional ou movimento internacional?

O nacionalismo

O nacionalismo baseia-se no conceito de nação – um povo que se vê como distinto de outros povos e, portanto, com direito de constituir o seu próprio Estado nacional independente (soberania nacional) em um determinado território. O nacionalismo pode se manifestar como um movimento político de autodeterminação nacional: a constituição do Estado nacional por meio da independência de um povo dominado por outro povo, ou por meio da unificação de um povo dividido em Estados separados. Em alguns casos, o povo/nação se identifica com uma única etnia (comunidade unida pela língua, costumes, história e, em geral, religião), negando às outras etnias que vivem no mesmo território o direito de pertencerem ao Estado nacional, quer dizer, de possuirem cidadania. Em outros casos, o povo/nação é composto por várias etnias que, mesmo com línguas e culturas diferentes, compartilham uma mesma história e um mesmo Estado nacional. Também no sentido político, o nacionalismo pode agir sob a forma do chauvinismo, isto é, como um patriotismo exagerado e belicoso que mobiliza o povo contra outras nações. O nacionalismo econômico, por sua vez, entende que a verdadeira soberania nacional pressupõe também independência econômica: a nação deve possuir o máximo de auto-suficiência (autarquia) e não depender do capital estrangeiro ou de importações. Assim, o Estado tem um papel central no desenvolvimento econômico, interferindo no capitalismo. A produção nacional deve ser protegida (protecionismo) e o livre-comércio rejeitado. Nos casos extremos, os setores estratégicos da economia (energia, transporte, comunicações) devem ser controlados pelo Estado (monopólios estatais).

NOTAS

  1. Perry (1999: 306)
  2. Albert Soboul in Droz (1976: 130)
  3. Blanning (1991: 30-31)
  4. Blanning (1991: 37-38)
BIBLIOGRAFIA

BLANNING, Timothy C. W. Aristocratas Versus Burgueses? A Revolução Francesa. São Paulo: Ática, 1991. Excelente introdução revisionista das concepções tradicionais da Revolução Francesa.

DROZ, Jacques (org). História Geral do Socialismo, Volume 1. Lisboa: Livros Horizonte, 1976. Possivelmente o mais detalhado estudo sobre a história do pensamento e dos movimentos socialistas de suas origens à década de 1970.

FALCON, Francisco José C. Iluminismo. São Paulo: Ática, 1986 Pequeno estudo do pensamento iluminista, muito útil como introdução ao assunto.

YOLTON, John W. (org). The Blackwell Companion to the Enlightenment. Cambridge: Blackwell, 1995. Uma enciclopédia do Iluminismo, fundamental para os interessados no tema.


 

 

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